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Opinião: Brittany Maynard, de 29 anos, mereceu o direito de morrer em paz

Brittany Maynard, uma jovem americana de 29 anos, enfrentava câncer em estado terminal - BBC Brasil
Brittany Maynard, uma jovem americana de 29 anos, enfrentava câncer em estado terminal Imagem: BBC Brasil

Jorge Ramos

05/02/2015 00h01

Há mortos a quem os vivos nunca deixam em paz. É o caso de Brittany Maynard, que tirou a própria vida em 1º de novembro passado, depois de receber o diagnóstico de um câncer cerebral incurável. Tinha só 29 anos. Sua morte continua sendo discutida nos EUA. Muitos acreditam que não deveria ter-se suicidado com ajuda médica, e sim deixado que a doença a matasse lenta e dolorosamente.

O tumor inoperável de Brittany estava alojado na parte do cérebro que controla a memória, a linguagem e a tomada de decisões. Dois médicos, que não se conheciam, concluíram de maneira independente que ela teria menos de seis meses de vida.

Nesse momento Brittany fez duas coisas: primeiro, uma lista com tudo o que tinha pendente - incluindo uma visita ao cânion do Colorado - e, segundo, um plano para morrer em seus próprios termos, antes que o câncer afetasse de maneira séria e irremediável suas faculdades mentais.

Ela e seu marido, Daniel Díaz, de origem cubana, mudaram-se da Califórnia para o Oregon - um dos três estados americanos que permitem a eutanásia, ou "suicídio assistido" - e procuraram ajuda médica para que Brittany pudesse tirar sua própria vida com medicamentos.

Há poucos dias conheci Daniel. Ainda usa a aliança de casamento. Cada vez que fala da esposa, quase como um reflexo, seus olhos se enchem de lágrimas. Daniel é um homem de luto, desses que carregam uma dor indisfarçável.

Como Brittany tirou sua vida?, perguntei-lhe. "Em 1º de novembro, nos levantamos, tomamos o café da manhã, fomos caminhar com a família e amigos", disse Daniel. "Ao chegar em casa, ela soube que já era o momento. A dor que estava sofrendo era cada dia pior. Estava deitada na cama: o paciente tem de tomar cerca de 150 ml de líquido." Esse líquido é uma poderosa combinação de sedativos e depressores do sistema respiratório. "Cinco minutos depois ela dormiu, e aos 30 as respirações baixaram a um ponto em que morreu tranquila, em paz."

Esse método - no qual o paciente tira a própria vida - não tem os problemas legais que enfrentou o doutor Jack Kevorkian, por exemplo. Ele administrava medicamentos para seus pacientes morrerem, e isso o levou à prisão várias vezes. No caso de Brittany, ela recebeu as receitas de um médico e se encarregou pessoalmente de tomar essa dose mortal.

Como Brittany deu entrevistas antes de sua morte, promovendo o direito a morrer com dignidade, alguns acreditavam que não estivesse tão doente. Mas Daniel me conta que as convulsões a paralisavam durante horas, não podia falar e sua deterioração física era patente.

A Igreja Católica se opôs abertamente ao plano de Brittany. Em dezembro, o papa Francisco inclusive escreveu em uma mensagem aos fiéis católicos: "Que mentira tão grande se oculta por trás de certas frases que tanto insistem na 'qualidade da vida', que fazem as pessoas pensarem que as vidas afetadas por doenças graves não valem a pena ser vividas".

Eu a li para Daniel.

"Minha esposa nunca foi muito religiosa", disse-me. "Mas foi uma pessoa muito boa. Foi maravilhosa. Trabalhava com crianças. Foi muito carinhosa. Por isso, se existe céu, são Pedro ou Deus lhes diriam: 'Você não precisa sofrer para estar aqui conosco. Bem-vinda. Entre'."

Daniel me disse que a maioria das pessoas desejaria morrer enquanto dorme e sem dor. Isso foi, segundo ele, exatamente o que fez Brittany. "A única coisa que ela fez foi controlar a dor e evitar uma morte horrível."

Daniel não gosta de dar entrevistas para a televisão, e claramente é um homem que está sofrendo a perda de sua esposa. Ainda está literalmente vivendo para ela. Estavam casados havia apenas um ano quando Brittany teve o diagnóstico de câncer cerebral.

Mas Daniel não quer virar a página. Pareceu-me um homem que continua casado com sua mulher. "Estou fazendo isso porque fiz uma promessa a Brittany: tentar aprovar uma lei na Califórnia para que as pessoas não tenham de mudar para outro estado para morrer em paz", disse.

Brittany morreu em paz, afirma Daniel. Os que não ficaram em paz são os que se sentiram no direito de dizer a Brittany como ela devia viver. E como devia morrer.