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A inversão da lógica no México

Jorge Ramos

26/03/2015 00h01

"Quando despertou, o dinossauro ainda estava lá."

- Augusto Monterroso

No México, a lógica e a justiça estão invertidas. Quem deve perder seu cargo: o que comete um ato de corrupção ou quem o denuncia? Claro, deveria perder o que é corrupto. Mas no México, seguindo a lógica do mundo ao contrário, quem comete o ato de corrupção fica em seu cargo e quem o denuncia é demitido. É a lógica mexicana do poder: mate o mensageiro.

Há quatro meses a jornalista Carmen Aristegui e sua equipe de investigadores denunciaram que a esposa do presidente do México, Angélica Rivera, incorreu em um grave conflito de interesses ao comprar e financiar uma casa -- avaliada em mais de US$ 6 milhões -- do grupo Higa, uma empreiteira contratada do governo. O Higa atualmente tem contratos de vários milhões de dólares com o governo mexicano.

A transação incomum -- que mexicano pode receber um tratamento semelhante de uma contratada? -- levou muitos a se perguntarem se a residência (conhecida popularmente como "Casa Branca") foi vendida em circunstâncias muito favoráveis em troca de contratos governamentais. Casa por favores?

Ponhamos as coisas em perspectiva: se Michelle Obama tivesse financiado uma casa particular com uma contratada do governo americano, seu marido, Barack Obama, não estaria mais na verdadeira Casa Branca. Isso não é ético nem transparente.

Impossível saber se houve pressões da presidência do México sobre a empresa MVS para demitir Aristegui.

Porta-vozes da MVS disseram que Aristegui foi demitida porque ela e seus representantes utilizaram o nome da MVS para arrecadar fundos destinados ao Mexicoleaks, um novo projeto de jornalismo investigativo, sem sua autorização. Mas ela suspeita que sim, houve. Tudo "nos faz pensar que houve uma intervenção governamental", disse a jornalista. "Não é um conflito entre particulares." Trata-se de uma "bofetada autoritária".

A lógica e a justiça sugeririam que um promotor independente ou uma comissão do Congresso investigasse a fundo o aparente conflito de interesses do presidente e sua esposa na compra da casa. Mas o presidente Enrique Peña Nieto nomeou Virgilio Andrade, um membro subalterno de seu gabinete, para que o investigasse.

Ninguém vai acreditar nele. Andrade tem pendurada em seu escritório uma grande foto do presidente, segundo comprovou o jornal espanhol "El País". A designação de Peña Nieto foi tão idiota, tosca e infantil que até parece uma brincadeira. Mas é a lógica mexicana do poder: faça-os acreditar que você faz, mesmo que não faça nada.

Outro exemplo. Quando o papa Francisco comentou em uma nota a um amigo que estava preocupado com a "mexicanização" da Argentina - referindo-se ao aumento da narcoviolência -, o governo de Peña Nieto imediatamente se queixou.

Mas, em vez de se preocupar com o que o papa diga e com a imagem negativa do México, primeiro seria preciso reconhecer que a maioria dos crimes no México não é punida. Além disso, desde que Peña Nieto chegou ao poder, mais de 37 mil mexicanos foram assassinados, segundo números oficiais. A nova lógica mexicana é que até o papa trai o México.

Mais um exemplo. Adoro as campanhas turísticas do porto de Acapulco: "Fale bem daqui" e do estado de Michoacán: "Um destino que tem tudo, só falta você". As fotos são espetaculares.

Mas como promover o turismo em lugares onde matam estudantes, jornalistas e civis? É a lógica mexicana do poder: tentar impor a imagem acima da realidade. Esperam, de maneira absurda, que a propaganda faça esquecer os assassinatos diários em Guerrero e Michoacán.

O que estamos vendo no México neste momento é um governo na defensiva, com atos de verdadeiro desespero, e uma sociedade civil cada vez maior, consciente e poderosa, que não se deixa levar. Os governos assediados (já vimos isso na Argentina) são muito perigosos: perdem os limites, isolam-se, tentam impor sua (i)lógica e fazem qualquer coisa - qualquer! - para sobreviver. Assim está o governo de Peña Nieto. Aristegui o descreveu como um "vendaval autoritário".

Entendamos. O poder nunca entrega o poder: é preciso arrancá-lo. E como o Congresso e a oposição política no México são mornos, cúmplices e medrosos, coube aos jornalistas independentes e aos estudantes e professores - e a todos os cidadãos comuns - lutar por um país mais justo e democrático.

Quando o poder abusa, o jornalismo tem de ser contrapoder. E no México temos grandes e corajosas mulheres jornalistas. Além disso, o México já está pronto para uma virada política.

Não demora. Os indignados são muitos. Pode surgir um movimento, ou muitos, como o Podemos, mas à mexicana, antissistema, sem as ataduras chavistas, menos dogmático e mais inclusivo.

A voz de Carmen Aristegui e de sua equipe não vai se apagar. Este não é o México de 1968. Aristegui e uma maravilhosa geração de jovens comunicadores mexicanos nas redes sociais estão do lado certo da história e lutam por um novo México.

O que acontece é que o velho México não acaba de morrer; o dinossauro continua lá, ferido, e está se debatendo.