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A mentira oficial sobre os 43 desaparecidos no México

O presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, ao discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York (EUA) - Jason Szenes/ EFE
O presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, ao discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York (EUA) Imagem: Jason Szenes/ EFE

Jorge Ramos

01/10/2015 00h01

"Tempos ideais para a fraude, o crime impune e a caça às bruxas." (Joan Manuel Serrat)

Esta é a história de como o governo do presidente Enrique Peña Nieto construiu uma mentira oficial sobre o desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa, em setembro de 2014. Mas a mentira foi descoberta.

Assim se construiu a mentira. Depois do desaparecimento dos estudantes, a Procuradoria Geral da República (PGR) disse ter realizado uma extensa investigação: 39 confissões, 487 peritagens, 386 declarações, 153 inspeções ministeriais e ação penal contra 99 envolvidos. O procurador, Jesús Murillo Karam, afirmou "de maneira contundente" à imprensa em janeiro de 2015 que os estudantes tinham sido incinerados no depósito de lixo de Cocula, seus restos triturados e depois atirados em um rio.

"Sem dúvida os estudantes normalistas foram privados de sua liberdade, privados de sua vida, incinerados e atirados ao rio San Juan", disse o procurador Murillo, acrescentando que a investigação se baseou em mais de 60 mil fragmentos de restos ósseos. "Essa é a verdade histórica dos fatos."

Não, essa era a versão falseada e incompleta que o procurador e o governo mexicano tentaram nos vender. Segundo cinco especialistas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o relatório do governo mexicano tem muitos erros.

O relatório do governo do México "é uma especulação", disse-me o peruano José Torero, um dos cinco especialistas e chefe do departamento de engenharia civil da Universidade de Queensland, Austrália. "A evidência material, no fundo, não existe."

Torero afirma que os 43 estudantes não foram incinerados no depósito de Cocula, como dizia o procurador. "Se houvesse um incêndio dessa magnitude, haveria danos generalizados em toda a vegetação ao redor, e esses danos não existem", concluiu. "Por outro lado, os ossos que foram encontrados no depósito de lixo de Cocula estão incinerados a um nível de calcinação que exige um fogo externo. Não houve a possibilidade de ocorrer tal incêndio."

A hipótese de que os jovens foram incinerados nesse depósito foi totalmente desmentida pelos especialistas da CIDH. Também é falsa a afirmação do agora procurador Murillo Karam de que não havia "nem uma só evidência, nem uma, da participação do Exército".

O Exército mexicano soube a todo momento do que estava acontecendo, disse-me José Miguel Vivanco, da HRW (Human Rights Watch), organização de defesa dos direitos humanos. "Está documentado" que o Exército e a Polícia Federal "estavam plenamente informados do que estava acontecendo em tempo real ", graças ao C4 (um sistema central de comunicações de acesso restrito às forças de segurança).

Além disso, afirmou Vivanco, "foram agentes da Polícia Federal que interceptaram um quinto ônibus onde ia um grupo de estudantes que conseguiu fugir e todos salvaram a vida. Esse quinto ônibus depois desaparece, e não ficaram rastros de seu paradeiro na investigação da PGR".

Isto é, as duas conclusões principais do relatório do governo sobre o desaparecimento dos estudantes --que foram incinerados em um depósito de lixo e que o Exército e a Polícia Federal não tiveram nada a ver-- são falsas e fazem parte da mentira oficial.

Por que o governo de Peña Nieto ocultou e encobriu em seu relatório a participação do Exército? Impossível de saber. São os jogos do poder. Mas por que inventar a teoria da incineração dos estudantes?

Só eles sabem. Primeiro, talvez, para "superar" o problema e livrar-se dele. O desaparecimento dos estudantes de Ayotzinapa acabou com a imagem positiva que Peña Nieto estava cultivando no mundo. E segundo, talvez, para culpar grupos violentos pelo incidente e ocultar a incompetência de seu governo diante da insegurança e do crime.

É muito grave que hoje ainda não saibamos onde estão os 43 jovens. Mas há algo ainda mais grave: erigir uma mentira oficial é o ato mais cruel e desumano que se pode conceber diante dos pais e parentes dos estudantes desaparecidos.

(Veja aqui a entrevista na televisão, em espanhol, com o especialista José Torero.)

Até o momento de escrever esta coluna, ninguém do governo mexicano havia telefonado a Torero. "Estou muito triste porque, apesar de ser uma investigação independente, a PGR a transformou em um circo na mídia", disse-me Torero. "Deveria ser uma discussão técnica. Se quiserem esclarecer isso, ficarei feliz em me reunir com especialistas."

Se realmente o governo mexicano quer saber o que aconteceu com os 43 estudantes, por que não fala com ele?