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Portugal quer reparar 'tiro no pé' histórico contra judeus

02/02/2015 07h43

A notícia de que o governo português aprovou na última quinta-feira (29) um decreto-lei regulamentando a concessão de nacionalidade portuguesa, por naturalização, a descendentes de judeus sefarditas (oriundos da península ibérica) expulsos de Portugal a partir do século 15, repercutiu no Brasil. O tema deve ter interessado muita gente. Foi assunto, notadamente, de uma reportagem no “Jornal da Globo”.

Em fevereiro do ano passado, o governo espanhol havia tomado uma medida pioneira da mesma natureza. Como sublinharam os jornalistas da Globo, milhões de brasileiros têm nomes de origem sefardita. Isto quer dizer que todos poderiam pleitear a nacionalidade portuguesa? Não é bem assim. Excluindo os degredados, a maior parte dos judeus portugueses que vieram para o Brasil colônia não foram propriamente “expulsos” de território português. Até 1822, a América portuguesa era um território sob a soberania lisboeta e seus habitantes continuavam sendo súditos da Coroa de Portugal. Mesmo quando eram executados, torturados ou extorquidos.

Teoricamente, a reparação visaria sobretudo os portugueses (incluindo portanto os colonos do Brasil) judeus e cristãos-novos --judeus convertidos a força ao catolicismo-- que fugiram para outros países. Ou os brasileiros descendentes dos indivíduos que foram diretamente atingidos pelos braços da Inquisição portuguesa. Será preciso esperar a publicação do decreto-lei, no próximo mês de março, para dirimir tais dúvidas.

Citada por alguns jornais para calcular o número de descendentes de sefarditas ibéricos vivendo fora de Portugal e da Espanha, a cifra de 3,5 milhões de indivíduos parece bastante subestimada. A expulsão dos judeus e as perseguições aos cristãos novos têm sido regularmente condenadas em Portugal. Quase sempre a crítica se fundamenta na perda de capitais e de cérebros que tal medida causou. A ponto de se atribuir o subdesenvolvimento de Portugal à repressão praticada pela Inquisição.

Já em 1643, o padre Antônio Vieira escrevia ao rei d. João 4º para criticar a incoerência econômica da política régia: “Verdadeiramente é dificultosíssima de entender a razão de Estado de Portugal porque, sendo um reino fundado todo no comércio, lança os seus mercadores para os reinos estranhos...”. Vieira se referia aqui aos comerciantes judeus ou cristãos novos forçados a deixar Portugal.

Num comentário sobre o decreto lei publicado na semana passada num jornal lisboeta, um internauta português escreveu, na mesma linha do padre Antônio Vieira: “é a reparação possível de um dos maiores tiros no pé que Portugal deu ao longo de sua história, para além de um ato de justiça”.

Ao anunciar o decreto lei, a ministra da Justiça de Portugal, Paula Teixeira da Cruz, mencionou as “infelizes razões históricas” a que a medida se relaciona. Partindo desta interpretação, outras vozes se levantaram em Portugal, e na Espanha, para que fossem também reconhecidas as iniquidades praticadas contra os muçulmanos ibéricos massacrados, escravizados ou expulsos dos dois países nos séculos 15 e 16.

Ficou faltando ao governo de Portugal declarar que deplorava ainda as “infelizes razões históricas” que fizeram o país proceder à escravização e deportação maciça de africanos para as Américas, durante mais de três séculos. Principal coautor desta imensa tragédia entre 1822 e 1850, o Brasil deveria se associar à eventual declaração portuguesa.