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Conservadorismo nos EUA é movido por republicanos que temem perder dinheiro

Paul Krugman

18/03/2014 00h01

Existem muitas coisas negativas que se podem dizer sobre Paul Ryan, o presidente da Comissão de Orçamento da Câmara e líder intelectual de fato do Partido Republicano. Mas é preciso admitir que ele é um sujeito muito articulado, um especialista em parecer que sabe do que está falando.

Por isso, é de certo modo cômico ver Ryan tentando explicar alguns comentários recentes em que ele atribuiu a pobreza persistente a uma "cultura, em particular em nossos centros urbanos, de homens que não trabalham e gerações de homens que nem sequer pensam em trabalhar". Ele diz que estava simplesmente sendo "desarticulado". Como poderia alguém sugerir que era um comentário racista disfarçado? Ora, ele até citou o trabalho de acadêmicos sérios, pessoas como Charles Murray, famoso por afirmar que os negros são geneticamente inferiores aos brancos.

Ah, espere. Só para ser claro, não há evidências de que Ryan seja pessoalmente racista, e seu comentário disfarçado talvez nem tenha sido deliberado. Mas, não importa. Ele disse o que disse porque esse é o tipo de coisa que os conservadores dizem uns aos outros o tempo todo. E por que eles dizem essas coisas? Porque o conservadorismo americano ainda é, depois de tantos anos, amplamente impelido pelas alegações de que os liberais estão tomando seu dinheiro duramente conquistado e dando-o para 'aquela gente'.

De fato, a raça é a Pedra da Roseta que dá sentido a muitos aspectos da política americana, de outro modo incompreensíveis. 

Dizem-nos, por exemplo, que os conservadores são contra um governo grande e altos gastos. Mas, enquanto os governadores e legislativos estaduais republicanos bloqueiam a expansão do Medicaid, o partido denuncia irritadamente medidas modestas de economia de gastos para o Medicare. Como essa contradição pode ser explicada? Bem, qual é a aparência de muitos receptores do Medicaid --e estou falando da cor de sua pele e não do conteúdo de seu caráter-- e como isso se compara com o beneficiário típico do Medicare? Mistério solucionado. 

Ou nos dizem que os conservadores, em particular o Tea Party, são contra as ajudas porque eles acreditam na responsabilidade pessoal, em uma sociedade em que as pessoas devem enfrentar as consequências de seus atos. Mas, é difícil encontrar denúncias irritadas do Tea Party sobre os enormes socorros a Wall Street, sobre os enormes bônus pagos a executivos, que foram salvos do desastre por apoio e garantias do governo.

Em vez disso, toda a paixão do movimento, a começar pelo famoso discurso de Rick Santelli na CNBC, foi dirigida contra qualquer sugestão de alívio financeiro para os endividados de baixa renda. E o que há nesses mutuários que os torna alvo de tanta ira? Você sabe a resposta.

Uma estranha consequência de nossa política ainda contextualizada nas raças é que os conservadores, na verdade, continuam se mobilizando contra os vagabundos que recebem benefícios da previdência, apesar de os vagabundos e a previdência terem desaparecido, ou nunca existido. A fúria de Santelli se dirigia contra o socorro às hipotecas, que nunca aconteceu na verdade. A direita se enfurece contra histórias de abuso dos cupons alimentares que quase sempre vêm a ser falsas, ou pelo menos muito exageradas. E a teoria da pobreza de Ryan, de que os homens negros não querem trabalhar, está defasada em décadas.

Nos anos 1970, ainda era possível afirmar de boa-fé que havia muitas oportunidades nos EUA e que a pobreza só persistia por causa da decadência cultural entre os afro-americanos. Na época, afinal, os empregos de colarinho azul ainda pagavam bem e o desemprego era baixo. A realidade era que a oportunidade era muito mais limitada do que os americanos prósperos imaginavam. Como documentou o sociólogo William Julius Wilson, a fuga da indústria dos centros urbanos fez com que os trabalhadores das minorias literalmente não pudessem chegar aos bons empregos, e as supostas causas culturais da pobreza eram, na verdade, consequências dessa falta de oportunidades. Ainda assim, você podia entender por que muitos observadores não conseguiam ver isso.

Mas, nos últimos 40 anos, os bons empregos para trabalhadores comuns desapareceram, não apenas dos centros das cidades, mas de todo lugar: ajustados pela inflação, os salários caíram para 60% dos trabalhadores americanos homens. E enquanto a oportunidade econômica encolhia para metade da população, muitos comportamentos que costumavam ser exibidos como demonstrações da decadência cultural negra --o colapso do casamento, o abuso de drogas e assim por diante-- se disseminaram também entre os brancos da classe trabalhadora.

Esses fatos estranhos, porém, não penetraram o mundo da ideologia conservadora. No início deste mês, a Comissão de Orçamento da Câmara, sob a direção de Ryan, divulgou um relatório de 205 páginas sobre o suposto fracasso da Guerra à Pobreza. O que o relatório tem a dizer sobre o impacto da queda real dos salários? Ele nem sequer menciona o assunto.

E como os conservadores não conseguem reconhecer a realidade do que está acontecendo para as oportunidades nos EUA, eles ficam sem nada a não ser aquele comentário disfarçado à moda antiga. Ryan não estava sendo desarticulado, ele disse o que disse porque é só o que tem a dizer.