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Como se dá a ligação entre crenças, fatos e dinheiro

Paul Krugman

08/07/2014 00h01

No domingo, o “The Times” publicou um artigo do cientista político Brendan Nyhan sobre um aspecto preocupante do atual cenário americano: a forte divisão partidária em torno de questões que devem ser simplesmente factuais, como o aquecimento do planeta e a evolução. É comum atribuir esse tipo de dissenso à ignorância, mas, como aponta Nyhan, a polarização, de fato, é pior entre aqueles aparentemente bem informados sobre essas questões.

O problema, em outras palavras, não é a ignorância, é a ilusão. Confrontados com um conflito entre as evidências e o que querem acreditar por razões políticas e/ou religiosas, muitas pessoas rejeitam as evidências. E o fato de saberem mais sobre as questões só aumenta o fosso, pois o bem informado tem uma visão mais clara de quais evidências precisa rejeitar para sustentar o seu sistema de crenças.

Como você pode imaginar, depois de ler Nyhan eu me peguei pensando sobre o semelhante estado de coisas quando se trata da economia, em particular da economia monetária.

Alguns antecedentes: pouco antes da Grande Recessão, muitos estudiosos e comentaristas conservadores --e até economistas-- tinham uma visão de mundo que combinava uma fé no livre mercado com o desdém pelo governo. Tais pessoas foram brevemente abaladas pela revelação de que os “cabeças de vento” que advertiram sobre a habitação estavam certos e que os mercados financeiros não regulados são perigosamente instáveis.

Mas, elas rapidamente se reagruparam, declarando que a crise financeira foi de alguma forma culpa dos liberais e que o grande perigo que a economia enfrenta agora não veio com a crise, mas sim dos esforços dos formuladores de políticas para limitar os danos.

Acima de tudo, eles fizeram muitas advertências sobre os males de “imprimir dinheiro”. Por exemplo, em maio de 2009, um editorial do “Wall Street Journal” alertou que tanto as taxas de juros quanto a inflação iam crescer “agora que o Congresso e o Federal Reserve inundaram o mundo com dólares”.

Em 2010, os principais economistas e especialistas conservadores enviaram uma carta aberta a Ben Bernanke advertindo que suas políticas arriscavam levar ao “enfraquecimento da moeda e à inflação”. Políticos importantes, como o deputado Paul Ryan, uniram-se ao coro.

A realidade, no entanto, recusou-se a cooperar. Embora o Fed tenha continuado em seu curso expansionista --seu balanço cresceu para mais de US$ 4 trilhões (em torno de R$ 10 trilhões), um aumento de até cinco vezes desde o início da crise--, a inflação permaneceu baixa. Na maior parte, os fundos que o Fed injetou na economia simplesmente alimentaram as reservas bancárias ou as participações em dinheiro de pessoas físicas, exatamente o que os economistas do outro lado haviam previsto.

Nem é preciso dizer que não é a primeira vez que uma doutrina econômica politicamente atraente foi desmentida pelos acontecimentos. Então, aqueles que entenderam errado voltaram aos estudos, certo? Rarararararará.

Na verdade, quase nenhuma das pessoas que previram a inflação galopante reconheceu que estava errada e que seu erro sugere algo de errado em sua abordagem. Algumas deram desculpas esfarrapadas; outras, seguindo os passos daqueles que negam as mudanças climáticas, caíram no buraco do coelho da teoria da conspiração, afirmando que realmente temos um aumento da inflação, mas que o governo está mentindo sobre os números (e, a propósito, não estamos falando de blogueiros ao acaso ou algo assim, estamos falando de professores famosos de Harvard). Principalmente, porém, a turma do enfraquecimento da moeda continua repetindo as mesmas coisas, ignorando o fracasso absoluto de seu prognóstico.

Talvez você se pergunte por que a teoria monetária está sendo tratada como as questões de evolução ou de mudança climática. A questão de como gerir o dinheiro não deveria ser uma questão técnica, distante de uma questão de doutrina teológica?

Bem, acontece que o dinheiro, de fato, é uma espécie de questão teológica. Muitos da direita são hostis a qualquer tipo de ativismo governamental, vendo-o como uma ameaça --se você admitir que o Fed pode, por vezes, ajudar a economia pela criação de “moeda fiduciária”, logo você verá os liberais confiscando sua fortuna e dando-a aos 47%. Além disso, não vamos esquecer que alguns conservadores influentes, incluindo Ryan, tiram sua inspiração de romances de Ayn Rand, nos quais o padrão-ouro tem uma posição essencialmente sagrada.

E se você observar a dinâmica interna do Partido Republicano, é óbvio que a facção do retorno ao ouro e do enfraquecimento da moeda vem ganhando força, apesar de suas previsões continuarem falhando.

Existe alguma coisa que possa reverter essa dogmatização?

Alguns intelectuais conservadores têm tentado persuadir seu movimento a abraçar o ativismo monetário, mas são cada vez mais marginalizados. O artigo de Nyhan nos levaria a esperar exatamente isso. Quando a fé, inclusive a economia com base religiosa, enfrenta as evidências, estas não têm a menor chance.