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Ninguém disse isso

Em 2012, manifestantes protestavam contra a lei de saúde do presidente dos EUA - 28.jun.2012 - Mark Wilson/Getty Images/AFP
Em 2012, manifestantes protestavam contra a lei de saúde do presidente dos EUA Imagem: 28.jun.2012 - Mark Wilson/Getty Images/AFP

Paul Krugman

28/04/2015 00h01

Imagine se você fosse um comentarista regular de assuntos públicos --talvez uma autoridade, talvez um suposto especialista em alguma área, talvez apenas um bilionário opinativo. Digamos que você usou seu peso sobre uma importante iniciativa política que está prestes a acontecer, fazendo fortes previsões de desastre. Você declarou, por exemplo, que o estímulo de Obama à economia fará disparar as taxas de juros; que as compras de bônus pelo Fed [o Banco Central dos Estados Unidos] vão “enfraquecer o dólar” e provocarão uma alta da inflação; que a Lei de Acesso à Saúde entrará em colapso, em um círculo vicioso de declínio de inscrição e aumento dos custos.

Mas nada que você previu realmente aconteceu. O que você faz? Você pode admitir que estava errado e tentar descobrir o porquê. Mas quase ninguém faz isso; vivemos em uma época de erros não reconhecidos.

Alternativamente, você pode insistir que forças sinistras estão encobrindo a realidade sombria. Muitos especialistas conhecidos são ou foram em algum momento “arautos da inflação”, alegando que o governo está mentindo sobre o ritmo de aumentos de preços. Houve também muitos proeminentes detratores do Obamacare, declarando que a Casa Branca estava manipulando os dados, que as políticas são inúteis, e assim por diante.

Por fim, há uma terceira opção: você pode fingir que não fez as previsões errôneas. Eu vejo muito disso entre as pessoas que emitiram advertências sobre as taxas de juros e a inflação e, agora, afirmam que não disseram nada. Mas a grande maioria desses casos, no entanto, ocorre na questão da assistência à saúde. O Obamacare está funcionando melhor do que esperavam seus defensores --mas seus inimigos dizem que as boas notícias não provam nada, pois afinal ninguém previra nada diferente.

Voltemos para 2013, antes de a reforma entrar plenamente em vigor, ou ao início de 2014, antes de chegarem os resultados do primeiro ano. Quais eram as previsões dos adversários do Obamacare?

A resposta é: desastre total. Segundo um relatório de maio de 2013 de um comitê da Câmara, os americanos estavam prestes a enfrentar um devastador “choque de tarifas”, com os prêmios das apólices quase dobrando.

E isso só ia piorar: no início de 2014, os especialistas favoritos da direita --ou que deveriam ser “especialistas”-- advertiram sobre uma “espiral da morte”, na qual apenas os cidadãos mais doentes se inscreveriam, fazendo com que os prêmios subissem ainda mais e muitas pessoas desistissem do programa.

E qual seria o efeito global sobre a cobertura dos seguros? Em meados de 2014, muitos republicanos importantes --incluindo John Boehner, presidente da Câmara-- estavam prevendo que o número de pessoas que perderiam sua cobertura seria maior do que o número daquelas que seriam asseguradas. E todo mundo na direita estava prevendo que a lei ia custar muito mais do que o previsto, acrescentando centenas de bilhões --se não trilhões-- ao deficit orçamentário.

O que realmente aconteceu? Não houve choque nas tarifas: os prêmios médios em 2014 foram cerca de 16% menores do que o previsto. Não há espiral da morte: em média, os prêmios para 2015 estão entre 2% a 4% mais altos do que em 2014, ou seja, um ritmo de aumento muito mais lento do que a norma histórica. O número de americanos sem seguro de saúde diminuiu em torno de 15 milhões e teria caído substancialmente mais se tantos Estados controlados pelos republicanos não tivessem bloqueado a expansão do Medicaid. E o custo global do programa foi muito abaixo das expectativas.

Só mais uma coisa: às vezes, ouvimos reclamações sobre a alegada má qualidade das apólices oferecidas às famílias recém-seguradas. Mas uma nova pesquisa realizada pela JD Power, uma empresa de pesquisa de mercado, concluiu que os recém-inscritos estão muito satisfeitos com a sua cobertura --mais satisfeitos do que a média das pessoas com seguros convencionais, que não fazem parte do Obamacare.

Ou seja, é o retrato de uma política que obteve sucesso. Seus críticos deveriam estar fazendo um exame de consciência para entender por que entenderam tudo errado. Mas não. Em vez disso, o que dizem --como no recente artigo do gestor de fundos hedge Cliff Asness-- é que não há nada de especial: “nunca se discutiu que mais pessoas seriam seguradas”. Nunca, exceto em tudo o que foi dito por alguém em posição de influência na direita americana. Ah, e todas as boas notícias sobre os custos são apenas uma coincidência.

É fácil e totalmente adequado ridicularizar esse tipo de coisa. Mas existem algumas coisas sérias em jogo aqui, e vão além da questão da reforma da saúde, por mais importante que seja.

Você vê, em um ambiente político polarizado, os debates políticos sempre envolvem mais do que apenas a questão específica que está sobre a mesa. Eles também são confrontos de visões de mundo. As previsões de desastre da dívida, da desvalorização do dólar e de espirais da morte provocadas por Obama refletem a mesma ideologia, e o fracasso total destas previsões deveria inspirar grandes dúvidas sobre esta.

E há também uma questão moral envolvida. Recusar-se a aceitar a responsabilidade por erros do passado é uma falha de caráter grave na vida privada de uma pessoa. Mas chega ao nível de verdadeiro delito quando estão em jogo políticas que afetam milhões de vidas.