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Raça, classe e negligência

05/05/2015 00h01

Toda vez que você se sente tentado a dizer que os EUA estão avançando na questão do racismo -- que o preconceito não é mais tão significativo quanto costumava ser -- acontece uma atrocidade que faz um furo no balão da sua inocência. Quase todo mundo percebe, espero, que o caso Freddie Gray não é um incidente isolado, que só é único na medida em que, por uma vez, parece haver uma possibilidade de que a justiça seja feita.

E os tumultos destrutivos em Baltimore tiveram pelo menos um propósito útil: chamar a atenção para as desigualdades grotescas que envenenam a vida de muitos americanos.

No entanto, me preocupa que o papel central que a raça e o racismo têm nesta história transmita a falsa impressão de que a pobreza debilitante e a alienação da sociedade são experiências exclusivamente negras. Na verdade, grande parte do horror que se vê em Baltimore e em muitos outros lugares é uma questão de classe, dos efeitos devastadores da crescente desigualdade extrema.

Tomemos, por exemplo, questões de saúde e mortalidade. Muitas pessoas têm apontado que há uma série de bairros negros em Baltimore nos quais a expectativa de vida é pior do que em nações empobrecidas do Terceiro Mundo. Mas o que realmente impressionante é que, nacionalmente, as disparidades de mortalidade nas diferentes classes têm sido crescentes, mesmo entre brancos.

Mais notavelmente, a mortalidade entre as mulheres brancas aumentou acentuadamente desde a década de 1990, e o aumento certamente se concentrou entre as pobres de pouca escolaridade; a expectativa de vida entre os brancos com menor escolaridade vem caindo a taxas que lembram o colapso da esperança de vida na Rússia pós-comunista.

E, sim, estes excessos de mortes são o resultado da desigualdade e da falta de oportunidade, mesmo naqueles casos em que a causa direta se encontra em algum comportamento autodestrutivo. O uso excessivo de medicamentos, o tabagismo e a obesidade são responsáveis por uma boa parcela de mortes precoces, mas há uma razão por que tais comportamentos são tão comuns, e a razão tem a ver com uma economia que deixa dezenas de milhões de pessoas para trás.

Tem sido desanimador ver alguns comentaristas que ainda escrevem como se a pobreza fosse simplesmente uma questão de valores, como se os pobres misteriosamente fizessem escolhas ruins e que tudo estaria bem se eles adotassem os valores da classe média. Talvez, apenas talvez, esse fosse um argumento sustentável quatro décadas atrás, mas, nesta altura, deveria ser óbvio que os valores de classe média só florescem em uma economia que oferece empregos de classe média.

O grande sociólogo William Julius Wilson argumentou há muito tempo que mudanças sociais entre negros amplamente condenadas, como o declínio das famílias tradicionais, de fato eram causadas pelo desaparecimento de postos de trabalho bem remunerados nas cidades do interior. Seu argumento continha uma previsão implícita: que, se outros grupos raciais enfrentassem uma perda similar de oportunidade de trabalho, seu comportamento mudaria de maneira semelhante.

E foi isso que aconteceu. Os salários achatados -- na verdade, em declínio em termos reais para a metade dos trabalhadores -- e a instabilidade no trabalho foram seguidos de quedas acentuadas no casamento, aumento de nascimentos fora do casamento e muito mais.

Como escreve Isabel Sawhill, da Brookings Institution: “Os negros têm enfrentado e continuarão a enfrentar desafios únicos. Mas, quando olhamos para as razões pelas quais os negros menos qualificados não estão se casando e ingressando na classe média, em grande são as mesmas razões pelas quais o casamento e o estilo de vida de classe média também estão escapando a um crescente número de brancos”.

Como eu disse, é desanimador ver comentadores que ainda sugerem que os pobres estão causando sua própria pobreza e que poderiam facilmente escapar dela, bastaria que agissem como membros da classe média alta.

E também é desanimador ver comentaristas que ainda insistem em outro mito desmascarado, que nós gastamos grandes somas na luta contra a pobreza sem sucesso (por causa de nossos valores, entende?).

Na realidade, os gastos federais com programas para famílias de baixa renda comprovada, excetuando-se o Medicaid, flutuaram entre 1% e 2% do PIB ao longo de décadas, subindo nas recessões e caindo nas recuperações. Isso não é um monte de dinheiro -- é muito menos do que outros países avançados gastam -- e nem tudo vai para as famílias abaixo da linha da pobreza.

Apesar disso, as medidas que corrigem as falhas conhecidas nas estatísticas mostram que fizemos algum progresso real contra a pobreza. E faríamos muito mais progressos se tivéssemos de fato uma fração ínfima da generosidade para com os necessitados que nós imaginamos ter.

O ponto é que não há desculpa para o fatalismo quando contemplamos os males da pobreza nos EUA. Dar de ombros e atribuir tudo a questões de valores é um ato de negligência maligna.

Os pobres não precisam de palestras sobre moralidade, eles precisam de mais recursos -- que podemos fornecer -- e melhores oportunidades econômicas, que também podemos fornecer com medidas diversas, que vão desde treinamento e subsídios até salários mínimos mais elevados. Baltimore e os EUA não têm que ser tão injustos quanto são.