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O Povo da Praça, parte 2

Thomas L. Friedman

20/05/2014 00h01

Em uma famosa entrevista em 1995 sobre seu casamento disfuncional e a infidelidade do príncipe Charles, a princesa Diana notou que "éramos três nesse casamento, então estava um pouco lotado". Eu me vejo pensando nessa citação ultimamente para descrever a nova política e geopolítica produzidas pelo "Povo da Praça" – todas as classes médias com aspirações e recém-conectadas que se reúnem em praças do Cairo a Kiev, de Istambul a Teerã, de Tunis a Moscou, para exigir que sua voz seja ouvida a respeito de seu futuro e melhor governança. Muitos líderes estão descobrindo que o Povo da Praça se parece com uma terceira parte espontânea, que surgiu entre eles e sua oposição tradicional domada e, consequentemente, a política deles está um pouco lotada – e muito mais interessante.

De fato, "A Praça" – como lugar para reunião, colaboração e pressão por essas forças políticas recém conectadas– está realmente perturbando tanto a política tradicional quando a geopolítica. Mas o mais importante a se observar daqui em diante é que Povo da Praça conseguirá passar da disrupção para a construção – será capaz de pegar a energia e aspirações rudimentares de seus seguidores na praça e transformá-las em partidos, eleições e melhor governança. Certamente, o mais interessante desses dramas atualmente envolve o Povo da Praça da Ucrânia contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Putin estava cuidando de seus próprios negócios corruptos, vivendo em um relacionamento de duas partes com a vizinha Ucrânia, que era liderada pelo presidente ainda mais corrupto, pró-Moscou, Viktor Yanukovych. De repente, de modo espontâneo, uma classe média ucraniana emergente, conectada e com aspirações – cansada tanto da corrupção do regime quanto de quão atrasada estava em relação aos seus vizinhos na União Europeia– exigiu que Yanukovych estabelecesse uma cooperação mais estreita e laços comerciais com a UE. Também começou a exigir algo agora comum em toda praça: o direito de serem tratados como "cidadãos", com direitos e responsabilidades, não como joguetes de oligarcas ou poderes externos.

Yanukovych acabou optando por um relacionamento econômico mais estreito com a Rússia, de forma que o Povo da Praça em Kiev o derrubou, desafiando cada aspecto da visão de mundo de Putin, moldada pela KGB. Putin não acredita que um protesto político possa ser espontâneo. Se um grande número de ucranianos se reuniu na praça em Kiev para exigir o fim da corrupção e laços mais estreitos com a UE,  isso só pode ter ocorrido porque a CIA, Otan ou a UE os inspirou ou pagou para que o fizessem. Toda a mentalidade de Putin é de cima para baixo, e a noção de que a combinação de globalização com a revolução de Tecnologia da Informação possa ter dado ao "povo" tanto a capacidade de ver coisas que não via antes quanto as ferramentas para colaborar e agir contra elas de baixo para cima, é totalmente estranha para ele.

Putin está olhando para trás, tentando restaurar o império czarista da Rússia, usando seus recursos naturais, enquanto o Povo da Praça de Kiev está olhando para frente. Tentando se associar à UE para que possa desenvolver seus recursos humanos. Essas pessoas acreditam que a integração de sua economia com a Europa resultaria em reforma judicial, transparência e regulações que não poderiam ser geradas de baixo e que seus líderes nunca aprovariam de cima. Para o Povo da Praça em Kiev, a associação UE-Ucrânia é uma alavanca vital para renovação doméstica, mas para Putin é uma ameaça direta à sua "esfera de influência".

O mesmo acontece na Turquia. Um movimento espontâneo surgiu para resistir à tentativa do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan de instalar um shopping center no único espaço verde próximo da Praça Taksim central de Istambul, mas ele rapidamente se transformou em protestos contra seu governo autocrático. Erdogan enlouqueceu. Ele criou um universo de dois partidos que incluía apenas o seu e os partidos de oposição turcos e as emissoras de TV, que ele intimidou, domou e neutralizou. Assim, o Povo da Praça turco criou uma nova oposição e, por meio do Twitter e YouTube, sua própria rede de TV.

Mas Erdogan conseguiu passar a perna no seu Povo da Praça com repetidas vitórias eleitorais. Como? Uma reportagem sobre a Turquia na Forbes.com dá uma resposta. Grande parte da base eleitoral de Erdogan é rural e não está no YouTube e no Twitter. Eles são “‘tecnoiletrados’; eles recebem suas notícias pela televisão", que ele controla. "Os canais de notícias de televisão mostram apenas os danos e virulência dos protestos, uma seleção de imagens que dá a impressão de anarquia provocada no país por encrenqueiros radicais". Putin usa a mesma propaganda em Moscou e na Ucrânia.

Esse fracasso em traduzir suas aspirações em partidos capazes de disputar eleições e então governar é o calcanhar de Aquiles do Povo da Praça – da Praça Tahrir ao Ocupe Wall Street.

Ou, como Moises Naim, autor de um livro muito inteligente sobre o assunto, "O Fim do Poder", observou recentemente em "The Atlantic": hoje, "um apelo por protesto via Twitter, Facebook ou mensagem de texto certamente atrairá uma multidão, especialmente se for uma demonstração contra algo – qualquer coisa, na verdade – que nos ultraje. O problema é o que acontece depois da marcha. Por trás de imensas manifestações de rua raramente há uma organização mais permanente e lubrificada capaz a agir com base nas exigências dos manifestantes e realizar o trabalho político chato, complexo, face a face, que produz mudanças reais no governo. Este é um ponto importante feito por Zeynep Tufekci, um membro do Centro para Políticas de Tecnologia da Informação da Universidade de Princeton, que escreve que 'antes da Internet, o trabalho tedioso de organização necessário para contornar a censura e organizar um protesto também ajudava a construir a infraestrutura para tomada de decisão e estratégias para sustentar o momento. Agora, os movimentos podem contornar esse passo, frequentemente em seu próprio detrimento'".

Daniel Brumberg, um especialista em democracia da Universidade de Georgetown e do Instituto Americano da Paz, aponta que o Povo da Praça mais bem-sucedido no mundo árabe, que conseguiu uma nova Constituição, é o da Tunísia, que é o país árabe que tinha "as mais robustas instituições da sociedade civil – especialmente uma poderosa federação sindical trabalhista, assim como associações empresariais, de direitos humanos e de advogados– capazes de arbitrar entre as facções seculares e religiosas", que se uniram na praça para derrubar o ditador da Tunísia. Esta também se beneficiou com o fato do exército estar de fora da política e de haver um equilíbrio de poder entre as forças seculares e islamitas, o que as obrigou a ser inclusivas em relação a outra.

Eu estou encorajado por muitos grupos da sociedade civil que monitoram o governo terem surgido na Ucrânia para assegurar que a vontade do Povo da Praça não seja roubada. Ainda não sabemos se o Povo da Praça da Ucrânia também conseguirá desenvolver políticas inclusivas – para respeitar as posições da população mais pró-Rússia no Leste. Sem o Povo da Praça, nenhuma mudança é possível nesses países, mas sem instituições da sociedade civil e políticas inclusivas, nenhuma mudança é sustentável.