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Putin piscou

23.mai.2014 - O presidente da Rússia, Vladimir Putin, fala durante o Fórum Econômico de São Petersburgo - Mikhail Klimentyev/AFP
23.mai.2014 - O presidente da Rússia, Vladimir Putin, fala durante o Fórum Econômico de São Petersburgo Imagem: Mikhail Klimentyev/AFP

Thomas L. Friedman

02/06/2014 00h03

Houve um momento, no auge da crise dos mísseis de Cuba, em outubro de 1962, quando os navios soviéticos se aproximaram e ficaram a poucos quilômetros de um bloqueio naval dos Estados Unidos e, em seguida, no último minuto, recuaram. Isso levou o então secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, a proferir uma das frases mais famosas do período da Guerra Fria: “nós estávamos nos encarando muito de perto e eu acredito que o outro cara acabou de piscar”.

A crise na Ucrânia nunca ameaçou se transformar em um Armagedom nuclear ao estilo da Guerra Fria, mas ela poderá ser o primeiro caso de provocação pós-pós-Guerra Fria, que opôs o século 21 contra o 19. Essa crise tem oposto a visão de mundo chinesa/russa, segundo a qual nós podemos tirar proveito da globalização do século 21 sempre que desejarmos enriquecer e também podemos nos comportar como potências do século 19 sempre que quisermos tirar uma lasquinha de algum vizinho, a uma visão que diz, “não, desculpem, o mundo do século 21 não é apenas interconectado, como também interdependente, e vocês terão que jogar de acordo com as regras ou pagarão um preço altíssimo”.

No final, tudo se resume ao putinismo contra o obamismo, e eu gostaria de ser o primeiro do meu grupinho a dizer que o “outro cara” – Putin – “acabou de piscar”.

Na verdade, eu gostaria de dizer mais: Putin fez quase tudo errado na Ucrânia. Ele achava que o mundo ainda estava em configurado em “esferas de influência” ditadas de cima para baixo, quando na verdade a Ucrânia estava totalmente imersa no surgimento de um movimento guiado pela “influência das pessoas” – as Pessoas da Praça, organizadas de baixo para cima e ansiosas por se unirem a sua própria esfera: o mundo da liberdade e do livre mercado representado pela EU (União Europeia).

Putin subestimou o patriotismo ucraniano, e até mesmo muitos falantes de russo que vivem no leste da Ucrânia não gostaram quando os capangas pró-Putin tentaram obrigá-los a se juntar à Rússia. “Em pesquisas de opinião, os ucranianos disseram que desejam a abertura das fronteiras e acesso à Rússia sem a necessidade de visto de entrada”, observou o pesquisador Craig Charney. “Mas eles também disseram nessas pesquisas – o que foi confirmado pela maioria dos eleitores que votaram em um candidato pró-europeu na eleição de domingo passado – que, apesar de acreditarem que a Rússia é um lugar agradável para visitar, eles não gostariam de morar no país”.

E, acima de tudo, Putin subestimou o efeito das sanções econômicas ocidentais. O mundo acabou por se mostrar mais interdependente, e a Rússia mais exposta a essa interdependência, do que Putin imaginava.

E, por isso, ele piscou. A primeira vacilada de Putin foi a retirada das tropas da fronteira com a Ucrânia e a permissão para que a eleição ucraniana prosseguisse. Curiosamente, ele optou por piscar mais explicitamente na semana passada, durante o Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, a conferência anual realizada pela Rússia para atrair investidores globais. “Nós queremos a paz e a calma na Ucrânia”, disse Putin aos executivos das empresas. “Estamos interessados que, em nossas fronteiras ocidentais, tenhamos paz e calma na Ucrânia. [...] Nós vamos trabalhar com a estrutura recém-eleita.”

Depois que Putin falou, o rublo subiu 1% em relação ao dólar norte-americano, o que demonstra o quanto os mercados globais continuarão premiando seu tom conciliatório e punindo sua agressividade. A situação não está sendo fácil para o presidente russo. Putin teve que gastar bilhões para impedir que o rublo se desvalorizasse e para compensar os investimentos estrangeiros perdidos. A agência de notícias Reuters informou que o primeiro vice-primeiro-ministro da Rússia, Igor Shuvalov, disse a alguns participantes do fórum de São Petersburgo que as sanções estão “provocando sérias consequências para a nossa economia”, que em breve poderá entrar em recessão.

E, como a agressão de Putin à Criméia estimulou a Europa a reduzir sua dependência do gás russo, Putin correu para Pequim para fechar um acordo de fornecimento de gás natural com a China. O preço que a China obteve nesse acordo é segredo, mas especialistas “suspeitam que Putin reduziu o preço do gás de forma significativa para a China, em uma manobra desesperada para garantir um fluxo de caixa estável para a Gazprom diante da diminuição das receitas e das sanções impostas pelo Ocidente”, relatou o jornal The Washington Post. “Há algo de suspeito nesse contrato”, disse Mikhail Krutikhin, analista do setor de energia da RusEnergy, que sugeriu que a Rússia fez um mau negócio. Putin piscou.

Vamos resumir: a invasão da Crimeia por Putin enfraqueceu a economia russa, permitiu que a China fechasse um acordo muito vantajoso para comprar gás russo, ressuscitou a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental), estimulou a Europa a se mexer para acabar com sua dependência do gás russo e iniciou um debate em toda a Europa sobre o aumento dos gastos com defesa. Bom trabalho, Vladimir. É por isso que eu digo que o país que Putin mais tem ameaçado hoje em dia é a própria Rússia.

O povo russo terá que resolver isso. Eu desejo boa sorte a eles. Eu não quero que a Rússia se transforme num estado falido. Mas eu quero ver a Ucrânia chegar aonde a maioria de sua população quer ir – ou seja, em direção a uma maior aproximação com a UE, mas sem uma ruptura de suas relações com a Rússia. Isso exigirá não só um novo presidente ucraniano, mas também um novo parlamento, uma nova constituição e uma rede engajada de grupos da sociedade civil capaz de fazer os frequentemente corruptos líderes de Kiev se submeterem ao estado de direito e aos padrões de governança exigidos tanto pela UE quanto pelo FMI em troca de ajuda.

Com a economia da Ucrânia intimamente ligada à da Rússia – Kiev deve à Rússia US$ 3,5 bilhões referentes ao fornecimento de gás –, Putin ainda tem um enorme poder para pressionar a Ucrânia. O objetivo do Ocidente não deve ser impedir que Putin exerça sua influência na Ucrânia. Considerando-se todas as conexões entre os dois países, isso não é possível nem saudável. O objetivo do Ocidente deve ser manter Putin afastado e piscando o suficiente para que a Ucrânia possa continuar como vizinha da Rússia – e definindo seu próprio equilíbrio entre a UE e Moscou –, mas não como vassala da Rússia.