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A democracia mundial está em recessão desde 2006

Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia - Kayhan Ozer/Reuters
Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia Imagem: Kayhan Ozer/Reuters

Thomas L. Friedman

19/02/2015 00h04

Agora, todo mês nós testemunhamos outra explosão antissemita por parte da liderança da Turquia, que parece estar comandando algum tipo de clube da calúnia do mês. Quem podia imaginar que todos os judeus do mundo estavam ocupados tentando derrubar o presidente Recep Tayyip Erdogan? Na semana passada, foi a vez do primeiro-ministro Ahmet Davutoglu declarar que a Turquia não "sucumbirá ao lobby judeu" –entre outros que supostamente estão tentando derrubar Erdogan, noticiou o "Hurriyet Daily News". Isso ocorreu depois de Erdogan ter sugerido que os oponentes domésticos do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) da situação estavam "cooperando com o Mossad", a agência de inteligência de Israel. Tão poucos judeus, tantos governos para derrubar.

As alegorias antissemitas baratas e grosseiras que Davutoglu e Erdogan agora usam regularmente para estimular sua base, são nojentas. Mas para uma grande nação como a Turquia, elas fazem parte de uma tragédia maior. Não é mais possível saber ao certo se a Turquia de Erdogan é uma democracia. Ainda pior, é necessário dizer que o distanciamento da Turquia da democracia faz parte de uma tendência global maior: a democracia está em recessão.

Como argumenta Larry Diamond, um especialista em democracia da Universidade de Stanford, em um ensaio intitulado "Enfrentando a Recessão Democrática" na edição mais recente da "Journal of Democracy": "Por volta de 2006, a expansão da liberdade e democracia no mundo chegou a uma parada prolongada. Desde 2006, não houve expansão líquida no número de democracias eleitorais, que tem oscilado entre 114 e 119 (cerca de 60% dos Estados do mundo). (...) O número tanto de democracias eleitorais quanto liberais começou a cair depois de 2006 e então estagnou. Desde 2006, o nível médio de liberdade no mundo também deteriorou ligeiramente".

Desde 2000, acrescentou Diamond, "eu conto 25 quebras de democracia no mundo –não apenas por claros golpes militares ou executivos, mas também por meio de degradação sutil e incremental dos direitos e procedimentos democráticos. (...) Algumas dessas quebras ocorreram em democracias de baixa qualidade; mas em cada caso, um sistema de disputa eleitoral multipartidária razoavelmente livre e justa foi eliminado ou degradado a um ponto bem abaixo dos padrões mínimos da democracia".

A Rússia de Vladimir Putin e a Turquia de Erdogan são exemplos dessa tendência, juntamente com a Venezuela, Tailândia, Botsuana, Bangladesh e Quênia. Na Turquia, escreve Diamond, o AKP tem estendido continuamente "o controle partidário sobre o Judiciário e a burocracia, prendendo jornalistas e intimidando os dissidentes na imprensa e na academia, ameaçando empresas com retaliação caso financiem partidos de oposição e usando prisões e processos em casos associados a supostos planos de golpe, para prender e remover da vida pública um número implausivelmente grande de supostos golpistas. Isso coincide com uma concentração impressionante e cada vez mais audaciosa de poder pessoal por (...) Erdogan". O estado de direito na Turquia está sendo seriamente minado.

Enquanto isso, o Freedom House, um grupo de monitoramento, apontou que, de 2006 a 2014, muito mais países pioraram em liberdade do que melhoraram. Essa tendência tem sido particularmente pronunciada na África sub-Saara, incluindo a África do Sul, onde a redução da transparência, a queda do estado de direito e o aumento da corrupção estão se tornando a norma.

Por que essa tendência? Um motivo, diz Diamond, é que os autocratas de hoje aprendem e se adaptam rápido. Eles desenvolveram e compartilham "novas tecnologias de censura e estratégias legais para restringir grupos da sociedade civil e impedir assistência internacional a eles", e nós não respondemos com nossas próprias estratégias. Além disso, os velhos hábitos de corrupção e abuso de poder se esconderam durante os anos 90 e 2000, quando a democracia pós-Guerra Fria estava em ascensão, "mas agora os autocratas corruptos sentiram que a pressão diminuiu e podem governar tão sórdida e gananciosamente quanto quiserem".

Além disso, a China, que não tem padrões de democracia e nem se incomoda com a corrupção no exterior, tomou o lugar dos Estados Unidos como fornecedora de ajuda externa mais prezada em grande parte da África, enquanto a Rússia se tornou mais agressiva em minar virtualmente cada tendência democrática em suas fronteiras. Finalmente, pós-11 de setembro, nós permitimos que a "guerra ao terror" suplantasse a promoção da democracia como nossa maior prioridade política externa, de modo que qualquer autocrata que combatesse os terroristas ganhava dos Estados Unidos um cartão "saia livre da cadeia".

Mas, acrescenta Diamond, "talvez a dimensão mais preocupante da recessão democrática seja o declínio da eficácia, energia e autoconfiança democrática" nos Estados Unidos e no Ocidente em geral. Após anos de hiperpolarização, impasse e corrupção por meio do financiamento de campanha, a principal democracia do mundo está cada vez mais disfuncional, com fechamentos do governo e incapacidade de aprovar algo tão básico como um orçamento.

"O mundo vê tudo isso", diz Diamond. "A mídia do Estado autoritário divulga alegremente esses problemas da democracia americana visando desacreditar a democracia em geral e imunizar o regime autoritário contra a pressão americana."

Diamond insiste para que os democratas não percam a fé. A democracia, como notou Churchill, ainda é a pior forma de governo, salvo todas as demais. E ainda estimula a imaginação das pessoas como nenhum outro sistema. Mas isso só permanecerá verdadeiro se as grandes democracias mantiverem um modelo que valha a pena ser seguido. Quem dera isso não estivesse em questão hoje.