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Palavras de ódio podem render vantagens iniciais e tragédias futuras

4.mai.1994 - Yitzhak Rabin (à esq.), então primeiro-ministro israelense, sela acordo de paz com o líder palestino Yasser Arafat (dir.); ele seria assassinado por um radical judeu - Jim Hollander/Reuters - 4.mai.1994
4.mai.1994 - Yitzhak Rabin (à esq.), então primeiro-ministro israelense, sela acordo de paz com o líder palestino Yasser Arafat (dir.); ele seria assassinado por um radical judeu Imagem: Jim Hollander/Reuters - 4.mai.1994

24/09/2015 00h03

Tem um filme que eu quero muito ver quando chegar a Washington. Parece muito relevante para os EUA hoje. É sobre o que pode acontecer em uma sociedade democrática quando os políticos vão longe demais, quando eles não apenas ficam mudos quando palavras de ódio que passam dos limites civilizados de repente se tornam parte do discurso público, mas, pior, começam a piscar os olhos e a espalhar esse discurso de ódio para obter vantagem.

Mais tarde, todos dizem que nunca ouviram as palavras, nunca viram os sinais ou alegam que suas próprias palavras foram mal compreendidas. Mas eles ouviram e viram e queriam dizer aquilo mesmo. Na verdade, eu não preciso ver o filme porque eu o vivi. E sei como termina. Alguém sai machucado.

O filme se chama "Rabin: The Last Day" [“Rabin, o último dia”]. A agência France Presse disse que o filme, do renomado diretor israelense Amos Gitai, é sobre a "campanha de incitação anterior ao assassinato em 1995 do primeiro-ministro Yitzhak Rabin" e "revisita uma forma de radicalismo judeu que ainda apresenta grandes riscos". Este é o 20º aniversário do assassinato de Rabin por Yigal Amir, um judeu de direita radical.

"Meu objetivo não foi criar um culto da personalidade em torno de Rabin", disse Gitai à AFP. "Meu enfoque foi para a campanha de incitação que levou a seu assassinato." Claro, a comissão de investigação oficial se concentrou nas falhas da segurança de Rabin, mas, acrescentou Gitai, "eles não investigaram quais eram as forças subjacentes que queriam matar Rabin. Seu assassinato ocorreu no final de uma campanha de ódio liderada por rabinos alucinados, colonos que eram contra a retirada dos territórios e a direita parlamentar liderada pelo partido Likud, já então chefiado por Benjamim Netanyahu, que queria desestabilizar o governo trabalhista de Rabin".

O filme, segundo a AFP, "se baseou em documentos, fotos e vídeos, especialmente dos meses que antecederam o assassinato de Rabin, incluindo os que mostram discursos de políticos como Netanyahu em comícios contra os acordos de Oslo, onde Rabin foi representado em um uniforme nazista".

Espero que muitos americanos vejam esse filme - pela advertência que ele oferece aos que ignoram ou racionalizam as campanhas divisivas e preconceituosas de Donald Trump e Ben Carson, e como eles estão arrastando seus partidos além dos limites cívicos, com candidatos dizendo, racionalizando ou ignorando coisas cada vez mais loucas e desinformadas a cada semana.

Trump realmente lançou sua campanha em 16 de junho com uma mensagem de polarização, dizendo: "Quando o México envia seu povo, não está enviando os melhores.... Eles estão enviando pessoas que têm muitos problemas, e elas estão trazendo esses problemas para nós. Elas estão trazendo drogas. Elas estão trazendo o crime. São estupradores. E algumas, eu suponho, são boas pessoas."

A coluna "Verificadora de Fatos" do jornal "Washington Post" lhe deu quatro Pinóquios, a nota mais alta por não dizer a verdade, comentando: "As repetidas declarações de Trump sobre imigrantes e crime reforçam uma percepção pública comum de que o crime é correlacionado à imigração, especialmente a imigração ilegal. Mas essa é uma percepção errada; nenhum dado sólido a apoia, e os dados que existem a negam."

E então Trump insultou John McCain, dizendo que ele só é um herói de guerra porque foi capturado, e acrescentando: "Eu gosto das pessoas que não foram capturadas, OK?" McCain passou cinco anos e meio como prisioneiro de guerra no Vietnã, foi torturado repetidamente e teve seus ossos quebrados. Como relatou a CNN, "enquanto isso, Trump recebeu quatro dispensas de estudante e uma dispensa médica para não servir na guerra do Vietnã".

O que significa impugnar um homem que sacrificou tanto por seu país? Significa que você pode enlamear qualquer pessoa.

Na semana passada outro limite foi cruzado. Em um evento de Trump na prefeitura, o primeiro interlocutor perguntou: "Nós temos um problema neste país. Chamam-se muçulmanos. Nós sabemos que nosso atual presidente é um deles. Sabemos que ele não é sequer americano. Mas tudo bem. Nós temos campos de treinamento fervilhando onde eles querem nos matar. Esta é a minha pergunta: podemos nos livrar deles?"

Trump respondeu: "Muita gente está dizendo que coisas ruins estão acontecendo lá fora. Nós vamos olhar para isso e para muitas outras coisas."

Trump poderia ter deixado o homem fazer sua pergunta e então corrigir seu absurdo racista, sem bloquear seu livre discurso, que é exatamente o que McCain fez em uma situação semelhante. Em vez disso, ele disse mais tarde que não cabia a ele defender Obama. Como alguém que aspira a ser presidente, cabe a ele defender a verdade, mas como o próprio Trump foi a fonte de tantos absurdos sobre Obama, acho que seria difícil. Em vez disso, ele tuitou: "Os cristãos precisam de apoio em nosso país (e em todo o mundo), sua liberdade religiosa está em jogo! Obama foi horrível, eu serei ótimo."

Então, como um mecanismo de relógio, Ben Carson viu Trump borrar outra linha vermelha cívica e o ultrapassou. Carson declarou: "Eu não defenderia que coloquemos um muçulmano no comando deste país".

Então toda uma comunidade religiosa é deslegitimada e se desperdiça mais uma oportunidade de alguém se levantar corajosamente pelo que é decente. Mas isso vai pegar bem com certos eleitores. E é tudo o que importa - até que alguma coisa realmente ruim aconteça. E então, tudo - as palavras, os tuítes, os sinais e as bravatas - serão cenas para mais um documentário que termina mal.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves