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007: Licença para beber

Umberto Eco

20/04/2013 00h01

Recentemente eu me deparei com uma nova tradução italiana de "Viva e Deixe Morrer" de Ian Fleming, no qual James Bond pede um martini feito com vermute Martini vermelho –isto é, doce. Para os não iniciados: é uma total heresia até mesmo falar em fazer um martini com vermute doce.

Com certeza algumas pessoas jurarão que os primeiros coquetéis martinis servidos nos Estados Unidos no século 19 eram feitos com 60 ml de Martini Rosso vermelho doce, 30 ml de gim Old Tom e um pouco de marasquino, juntamente com alguns outros ingredientes que certamente horrorizariam qualquer pessoa bem criada atual. Mas outros mantêm que o martini só se tornou popular em sua forma atual usando não o vermute Martini Rosso, mas o Noilly Prat –um vermute seco quase claro– e que o drinque foi batizado não por causa do Martini Rosso, mas por causa da cidade de Martinez na Califórnia (ou, dependendo da pessoa para quem você perguntar, por causa de um barman chamado Martinez). Eu sugeriria a qualquer interessado em analisar esse assunto altamente complexo que consulte a obra seminal "Martini, Straight Up: The Classic American Cocktail", de Lowell Edmunds.

Mas a questão permanece: o que exatamente James Bond vem bebendo todos estes anos? A resposta é: um pouco de tudo. Considere, por exemplo, o início de "Goldfinger" (1959), que diz: "James Bond, com uma dose dupla de uísque em seu interior, sentou-se na sala de espera de passageiros do Aeroporto de Miami e pensava sobre a vida e a morte".

Mas, se formos nos concentrar nos martinis, o primeiro que 007 bebe –no primeiro livro, "Cassino Royale" (1953)– é o que entrou para a história como o martini vesper: "três doses de Gordon's (gim), uma de vodca, meia dose de Kina Lillet. Bata bem até ficar gelado, então adicione uma fatia fina e grande de casca de limão. Entendeu? (O Kina Lillet, um vinho fortificado que não é mais produzido, era um tanto semelhante ao vermute.) Bond bebe outro martini vesper no filme "Quantum of Solace".

Com mais frequência, entretanto, Bond bebe o que pensaríamos de um martini atual –não importa que ele peça vodca em vez de gim– e especificar famosamente que seja batido, não mexido. Agora, da época de Hemingway em diante, nós sabemos que um bom martini é feito com uma dose de vermute seco despejada em uma coqueteleira já cheia de gelo, adicionando gim, batendo, e então servindo o coquetel no copo clássico de martini triangular e adicionando uma azeitona. Mas alguns connoisseurs diriam que, após despejar o vermute seco e batê-lo, é preciso coá-lo, deixando apenas uma pátina para dar sabor aos cubos de gelo. Apenas então é que o gim deve ser adicionado e, no final, coar o drinque bem resfriado em um copo.

A proporção ideal de gim para o vermute varia de um connoisseur a outro: alguns preferem não coar o vermute antes da adição do gim, enquanto outros permitem apenas que um raio mínimo de luz passe pela garrafa de vermute e toque o gelo. E pelo menos uma versão do coquetel dá a opção de servir on the rocks –uma perspectiva que assustaria qualquer bebedor refinado.

Por que um connoisseur como Bond iria querer seu martini batido, não mexido? Alguns argumentam que bater o martini introduz mais ar na mistura, melhorando o sabor. Mas, pessoalmente, eu não acho que um cavalheiro como Bond preferiria seu martini batido. Alguns tentaram explicar essa preferência não característica  alegando (erroneamente, ao que parece) que a frase famosa só aparece nos filmes de Bond, e nunca nos romances –assim como sir Arthur Conan Doyle nunca escreveu a famosa fala de Sherlock Holmes, "Elementar, meu caro Watson". É verdade que a frase não é tão velha quanto a afinidade original de Bond pelo martini vesper em "Cassino Royale", mas 007 pode ser encontrado pedindo um martini com essas instruções características em "007 Contra o Satânico Dr. No" (1958).

Sessenta anos após a publicação do primeiro romance, Bond é certamente a figura mais famosa associada ao martini –apesar dos connoisseurs discutirem sobre qual é a forma apropriada de preparar um. Que melhor modo de marcar o aniversário que erguer uma taça?