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É melhor ser um ladrão notório do que um homem honesto anônimo

Umberto Eco

10/07/2014 00h01

Um dos maiores problemas dos nossos tempos, que parece preocupar praticamente todo mundo hoje em dia, é o crescente número de ameaças à nossa privacidade.

Em sua forma mais simples, assumimos que “privacidade” significa que todos têm o direito de fazer suas coisas sem que qualquer outra pessoa tome ciência, especialmente as agências ligadas aos centros de poder. Valorizamos tanto a nossa privacidade que estabelecemos instituições e regulamentos para protegê-la.

Hoje em dia, nossas conversas muitas vezes se voltam para o medo de alguém invadir nossos registros de cartões de crédito e descobrir os bens que adquirimos, em quais hotéis nos hospedamos ou onde fomos jantar. Isso sem contar a preocupação de que nossos telefones possam ser grampeados sem justa causa: a empresa de telecomunicações britânica Vodafone recentemente soou o alarme sobre a existência de agentes mais ou menos secretos em vários países acessando informações que vão desde com quem falamos até o que dizemos ao telefone.

A julgar pela forma como falamos sobre a questão da privacidade, parece que a temos como sagrada, como algo a ser defendido a todo custo, para que não acabemos vivendo em uma sociedade governada pelo proverbial Big Brother de George Orwell --uma entidade que tudo vê e que monitora todas as nossas ações, talvez até os nossos pensamentos.

Mas, a julgar pelo nosso comportamento, será que de fato nos importamos tanto com a nossa privacidade? Considere o seguinte: houve um tempo em que a maior ameaça à privacidade de uma pessoa era a fofoca; as pessoas tinham medo que sua roupa suja fosse exibida em público, temendo que isso pudesse prejudicar sua fama. Hoje em dia, no entanto, enquanto buscamos uma forma de nos definir no mundo moderno, há uma ameaça maior do que a perda de privacidade: a perda de visibilidade. Em nossa sociedade hiper-conectada e rápida, muitos só querem ser vistos.

E assim, hoje, uma mulher que se prostitui (e que, nos velhos tempos, teria tentado esconder seu ofício da família e dos vizinhos) anuncia-se como “acompanhante” e adota um papel público, talvez até mesmo aparecendo em televisão. Casais que antes teriam mantido seus problemas de relacionamento privados hoje aparecem em programas de TV vagabundos, revelando que são adúlteros ou chifrudos e são recebidos com aplausos. O estranho sentado ao seu lado no trem grita ao celular o que ele acha da cunhada ou o que o contador deveria fazer. E uma pessoa que é alvo de uma investigação policial de alto perfil --que, em outros tempos, poderia ter deixado a cidade ou se recolhido em casa, esperando a onda de escândalos passar-- até aumenta suas aparições públicas e estampa um sorriso em seu rosto, porque é melhor ser um ladrão notório do que um homem honesto, mas anônimo.

O sociólogo Zygmunt Bauman escreveu recentemente no “La Repubblica” sobre o poder do Facebook e de outras mídias sociais para fazer as pessoas se sentirem ligadas umas às outras. Isso trouxe à mente um texto que Bauman escreveu para o “Social Europe Journal” em 2012, no qual ele discute como as mídias sociais, como instrumentos para manter o controle sobre os pensamentos e as emoções das pessoas, podem ser aproveitadas por várias potências interessadas em vigilância. Bauman aponta que, em última instância, essas violações da vida privada são possíveis graças à participação entusiástica das próprias pessoas cuja privacidade está sendo violada. Ele argumenta que “vivemos em uma sociedade confessional, que promove a auto-exposição pública como a prova mais potente e única verdadeiramente proficiente de existência social”.

Em outras palavras, pela primeira vez na história da humanidade o espionado está colaborando com os espiões para simplificar a tarefa destes. Além disso, a pessoa comum se satisfaz em entregar a sua privacidade quando isso permite que ela se sinta realmente “vista” pelos outros. (Não importa se aquilo que é visto é considerado um comportamento idiota ou até mesmo criminoso.)

Quando somos capazes de saber absolutamente tudo sobre todos, o excesso de informação só irá produzir confusão e ruído. Isso deveria preocupar os espiões, mas não os espionados, que parecem contentes com a ideia de que eles e os seus segredos mais íntimos são conhecidos por amigos, vizinhos e até mesmo inimigos. Atualmente, submeter-se a essa exposição talvez seja a única maneira de sentir-se verdadeiramente vivo e conectado.

Falamos muito de nossa preocupação com a privacidade. Mas se as ações falam mais alto do que palavras, então a nossa privacidade não parece importar tanto assim para nós. Pelo menos não tanto quanto o reconhecimento.

(Umberto Eco é autor de best-sellers internacionais como “Baudolino”, “O Nome da Rosa” e “O Pêndulo de Foucault”, entre outros. Traduzido do italiano por Alastair McEwen e do inglês por Deborah Weinberg)