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Dante e o Islã

03/03/2015 00h03

Em 1919, Miguel Asín Palacios publicou um livro sobre "A Divina Comédia" de Dante que causou muita sensação. Na época, o 600º aniversário da morte deste mais italiano dos poetas estava prestes a ser comemorado. No livro, "La Escatologia Musulmana em la Divina Comedia" (A escatologia islâmica na Divina Comédia, em tradução livre), Asín Palacios passa centenas de páginas documentando as notáveis semelhanças entre a ascensão alegórica de Dante do inferno ao paraíso, e as jornadas descritas por diversos textos dentro da tradição islâmica, especialmente as várias versões da jornada noturna do Profeta Maomé ao inferno e a ascensão ao paraíso.

As ideias do acadêmico espanhol eram explosivas, especialmente na Itália. O livro de Asín Palacios levou a um debate passional entre os apoiadores de sua pesquisa e os defensores da originalidade de Dante. Além disso, na época, o mundo islâmico era desprezado no Ocidente, em meio ao clima da ambição colonial e "civilizadora". Como alguém poderia pensar que um gênio italiano como Dante devia algo às tradições daqueles maltrapilhos não-europeus?

No final dos anos 80 em Bolonha, meus alunos e eu organizamos uma série de seminários que tratavam dos intérpretes "delirantes" de Dante. Um livro foi publicado ("L'idea deforme", ou "A Ideia Deformada", editado por Maria Pia Pozzato), que incluía vários ensaios sobre alguns desses pensadores –Gabriele Rossetti, Eugène Aroux, Luigi Valli, René Guénon, Giovanni Pascoli– todos rotulados como intérpretes excessivos, extravagantes ou paranoides do divino poeta. Na época, houve alguma discussão sobre se deveríamos incluir Asín Palacios nas fileiras dos excêntricos. Mas decidimos por não, porque, na época, já tinha ocorrido muita pesquisa subsequente mostrando que Asín Palacios talvez tenha sido ocasionalmente excessivo em suas afirmações, mas certamente não era delirante.

Está firmemente estabelecido que Dante foi influenciado por muitas fontes muçulmanas. Logo, a questão não é se Dante mergulhou nesses textos diretamente, mas sim como ele teve a acesso a eles durante a Idade Média. Muitos acadêmicos cristãos escreveram sobre suas visões do além. Essas visões são descritas em "The Life of Saint Macarius the Roman", "The Voyage of Brendan" e "The Vision of Tundale", assim como na lenda do Poço de São Patrício. Mas, é claro, todas essas são fontes ocidentais.

Em seu livro, Asín Palacios comparou essas histórias às encontradas na tradição islâmica, mostrando que, como Dante, esses visionários ocidentais tinham aprendido algo com os visionários da outra costa do Mediterrâneo. Na época, Asín Palacios ainda não sabia sobre "O Livro da Escada de Maomé", redescoberto nos anos 40, que foi traduzido do árabe.

Será que o próprio Dante conhecia a história da jornada do Profeta ao além? Ele poderia ter ouvido a respeito por meio de Brunetto Latini, seu mestre, ou lido as versões em latim dos textos árabes sobre a história e teologia do Islã, que foram incluídos no "Collectio Toledana", encomendada por Pedro, o Venerável, o abade francês de Cluny, antes do nascimento de Dante.

É claro, o reconhecimento dessas influências não diminui a grandeza de Dante. Muitos grandes autores fizeram uso de tradições literárias anteriores para conceber obras totalmente originais.

Logo, por que desencavei essas descobertas e debates? Porque agora, o livro de Asín Palacios foi relançado pela editora italiana Luni. A nova edição tem um título mais atraente, "Dante e l'Islam" ("Dante e o Islã", em tradução livre), e inclui uma ótima introdução de autoria de Carlo Ossola para a tradução de 1994.

Ainda faz sentido ler o livro de Asín Palacios após tanta pesquisa sucessiva ter substanciado suas alegações? Sim, por ser agradavelmente escrito e apresentar uma imensa quantidade de comparações entre Dante e seus "precursores" árabes. E é ainda mais relevante hoje –uma época em que, perturbadas pela insensatez bárbara dos fundamentalistas islâmicos, as pessoas tendem a esquecer as relações que sempre existiram entre as culturas ocidental e islâmica.