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Do Holocausto ao 'Charlie Hebdo'

Umberto Eco - Peter Kollanyi/EFE
Umberto Eco Imagem: Peter Kollanyi/EFE

31/07/2015 00h01

O massacre na "Charlie Hebdo" em Paris, no início deste ano, foi particularmente doloroso para mim. Isso porque eu conhecia o cartunista Georges Wolinksi, uma das 12 pessoas mortas na redação da revista satírica francesa. Certa vez ele me deu uma caricatura engraçada de mim, da época em que a equipe editorial da revista italiana "Linus" costumava se reunir em um bar.

Pessoas na França e ao redor do mundo rapidamente condenaram o ato terrorista. Editoriais tanto defenderam o direito da "Charlie Hebdo" de publicar as caricaturas do Profeta Maomé quanto o direito de liberdade de expressão. Os dois terroristas islâmicos que dispararam na redação da "Charlie", assim como seus aliados sanguinários do grupo Estado Islâmico, representam uma nova forma de nazismo. São racistas que defendem a eliminação daqueles que pertencem a outro grupo étnico e querem conquistar o mundo.

Nos meses que se passaram desde o ataque em janeiro, a revista britânica "New Statesman" começou a planejar uma edição dedicada à liberdade de pensamento, com publicação prevista para o final de maio, e pediu ao ilustrador ganhador do Prêmio Pulitzer, Art Spiegelman, que criasse a capa. Spiegelman, que é um grande amigo meu, desenhou uma imagem chamativa de uma mulher amordaçada com uma bola. Mas quando ele pediu à revista que também publicasse sua caricatura de Maomé, os editores recusaram (apesar do mesmo desenho já ter aparecido em algumas publicações europeias e americanas). Diante disso, Spiegelman também não quis que a capa fosse publicada.

Eu considero Spiegelman um gênio. Sua "graphic novel" "Maus" ainda é um dos textos literários (mesmo que em forma de história em quadrinhos) mais importantes sobre o Holocausto que conheço. Mas neste caso, eu discordo dele. Spiegelman deveria ter consentido com a publicação da capa sem insistir que a caricatura de Maomé também fosse publicada.

Eu acredito que a liberdade de expressão deva ser defendida, mesmo quando os pontos de vista expressados sejam contrários aos nossos (como nos diz Voltaire). Mas também acredito no princípio ético de que não devemos ofender as sensibilidades religiosas dos outros. Esse é o motivo para as pessoas blasfemarem em casa, mas não na igreja. Nós devemos nos abster de fazer caricaturas de Maomé, não pelo temor de represálias violentas, mas simplesmente por ser descortês. Esse também é o motivo para não fazermos caricaturas da Virgem Maria, mesmo que os católicos não sejam (ao menos não atualmente) propensos a massacrar aqueles que o fazem.

Eu recentemente dei uma olhada na internet e notei que nenhum dos sites que protestaram contra a decisão da "New Statesman" publicaram o desenho de Spiegelman. Por quê? Por respeito aos outros ou por medo? Eu suspeito que seja pelo segundo.

Diante do horror dos ataques em Paris, foi perfeitamente legítimo defender o direito à liberdade de expressão –-mesmo quando essa expressão em particular seja descortês-– ao declarar "Je suis Charlie". Mas se eu fizesse parte da equipe editorial da "Charlie", eu não zombaria das sensibilidades religiosas de muçulmanos ou cristãos (ou as de quaisquer religiões).

Dois princípios fundamentais estavam em ação no caso da "Charlie", mas eram difíceis de desmembrar após uma violência tão horrível. Se os católicos se aborrecem quando você ofende a Virgem Maria, você deve respeitar seus sentimentos. Escreva um ensaio histórico prudente colocando em dúvida a Imaculada Conceição, se quiser. Mas se os católicos começarem a atirar naqueles que ofendem a Virgem Maria, passe a combatê-los com tudo o que tiver.

Por exemplo, antissemitas de todo tipo publicaram caricaturas horrendas de "judeus vilões" por décadas. A cultura ocidental basicamente aceitou esses insultos e respeitou as liberdades daqueles que as disseminavam, como deveria. Mas quando os nazistas começaram a massacrar os judeus, pessoas de todo o mundo se ergueram contra eles. Colocando de outra forma, a liberdade do virulento antissemita do século 19, Édouard Drumont, foi respeitada, mas os assassinos nazistas foram enforcados em Nuremberg.