Topo

Arte e cultura não estão separadas das questões urgentes de nosso tempo

Umberto Eco

26/08/2015 00h02

Por dois dias neste verão (no Hemisfério Norte), o ministro da Cultura da Itália, Dario Franceschini, recebeu 83 ministros da Cultura e representantes de todo o mundo como parte da Expo 2015 de Milão, a exposição universal. Os visitantes viram a Fundação Prada, desfrutaram de uma noite na ópera La Escala e admiraram a "Última Ceia" de Leonardo da Vinci. Mas também conversaram –sobre artes e cultura, e como promovê-las e preservá-las na era moderna. (Milagrosamente, os oradores em geral conseguiram manter seus comentários breves. Talvez tenham treinado no Twitter.)

Bem, tudo isso poderia levar algumas pessoas a perguntar: as preocupações fundamentais de nosso tempo não deveriam ser o terrorismo, a guerra, a economia, afome e a mudança climática? Por que deveríamos nos reunir para discutir algo tão comparativamente frívolo como ativos culturais? Afinal, Giulio Tremonti disse a frase famosa quando foi o ministro da Economia e Finanças da Itália: "Não se vive de cultura".

Na verdade, os ativos culturais de uma cidade, como casas de ópera de renome internacional e obras de arte de valor inestimável, podem estimular o desenvolvimento econômico. Além disso, a conversa neste verão em Milão não ignorou o terrorismo e nem a mudança climática: os participantes discutiram como proteger as obras de arte de ataques terroristas e desastres naturais. No final, o evento em Milão foi um lembrete valioso de que, em um mundo composto de tantas culturas diversas vivendo em contato constante umas com as outras, nossos recursos culturais são fundamentais para nossa compreensão mútua e coexistência pacífica.

O mundo há muito sofre de uma falta de compreensão cultural. Antes dos movimentos de vanguarda do início do século 20, os europeus em grande parte consideravam a arte africana como sendo bárbara e incompreensível. Historicamente, alguns cristãos europeus ficavam consternados ao saber que templos indianos exibiam esculturas eróticas, e que certas religiões retratavam suas divindades em forma animal. (Vamos ignorar por um momento que, por séculos, o cristianismo ocidental retratou o Espírito Santo como um pombo.)

Muito mudou, é claro –e não apenas graças à antropologia cultural, que por mais de um século vem tentando persuadir os ocidentais a conhecerem e entenderem outras culturas. Isso também ocorre graças às melhorias no transporte e do turismo em massa. Hoje, multidões de japoneses podem visitar a Itália para ver a "Última Ceia" e outras importantes obras de arte, enquanto multidões de europeus podem facilmente ir ao exterior para ficar diante das pirâmides do Egito ou de templos asiáticos. Muitos de nós estão aprendendo a apreciar as coisas belas produzidas por outros povos –obras cuja existência era desconhecida para nós até relativamente pouco tempo atrás.

É verdade que a natureza do turismo moderno exige em geral que passemos algum tempo em locais que parecem os mesmos: falando de modo geral, um aeroporto internacional ou um grande hotel não são tão diferentes uns dos outros. Mas assim que saímos desses locais de aparência genérica, podemos encontrar beleza desconhecida e surpreendente.

Isso não quer dizer que esses intercâmbios culturais de alguma forma eliminarão o racismo, a xenofobia ou os conflitos políticos ou religiosos. Claramente, um encontro cultural não pode, por si só, salvar uma criança que passa fome na África. (O ex-ministro Tremonti pontuou seus comentários sobre não ser possível viver de cultura brincando que, talvez, devêssemos ir a um café e pedir um sanduíche "Divina Comédia".) Mas com certeza os estímulos culturais contribuem indiretamente para maiores esforços humanitários, ao inspirar gerações de pessoas a entenderem melhor outras sociedades e a darem uma mão àquelas em necessidade.

Em um mundo tão dominado por conflito militar e econômico, a disseminação da cultura e um conhecimento recíproco sobre a herança artística do outro podem ter uma influência profundamente positiva. As artes e cultura não estão separadas das questões mais urgentes de nosso tempo –pelo contrário, elas são cruciais para a conversa.