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Chefe do futebol italiano faz discurso antissemita baseado em erro de interpretação

Carlo Tavecchio, presidente da Federação Italiana de Futebol - ALESSANDRO BIANCHI / REUTERS
Carlo Tavecchio, presidente da Federação Italiana de Futebol Imagem: ALESSANDRO BIANCHI / REUTERS

Umberto Eco

The New York Times

25/11/2015 06h00

Carlo Tavecchio, presidente da Federação Italiana de Futebol, conhecido por seus comentários ofensivos sobre mulheres, negros, gays e judeus, falou de novo. Depois da ressalva habitual --"Não tenho nada contra os judeus"--, Tavecchio aparentemente disse ao site italiano "SoccerLife" que "é melhor ficar de olho neles", de qualquer modo. O problema é que ele reforçou sua declaração atribuindo-a a mim.

Que eu saiba, o único jornalista que contestou essa atribuição foi Federica Seneghini, no "Corriere della Sera", que relatou o comentário de Tavecchio e acrescentou que ele havia "citado erroneamente o escritor Umberto Eco (que em suas obras pretende exatamente o contrário)". Em muitos outros casos, a atribuição foi aceita como correta sem que alguém se desse o trabalho de verificar o fato. Isso é a Itália.

No entanto, o que mais me surpreendeu não foi que Tavecchio me tenha citado erroneamente, mas simplesmente que me citasse, como se ele fosse um frequentador dos cadernos de cultura. É verdade, na gravação da entrevista ao "SoccerLife" (produzida no ano passado e publicada pelo "Corriere della Sera" no início de novembro), parece que o entrevistador, Massimiliano Giacomini, provoca Tavecchio dizendo:

"Mas, como disse Umberto Eco...".

Tavecchio então termina a sentença com "é melhor ficar de olho neles". Isso poderia sugerir que a pessoa que de fato me citou erroneamente foi Giacomini, e não Tavecchio. No entanto, o fato de Tavecchio terminar a frase sugere que ele também quis se referir a minha obra.

O que eu poderia ter dito para merecer essa ridícula interpretação de Tavecchio? Em muitas de minhas obras sobre o antissemitismo, inclusive no romance "O Cemitério de Praga", coloquei personagens históricos dizendo coisas que eles realmente disseram, e é possível que um desses personagens tenha dito algo semelhante sobre os judeus.

Agora, uma espécie de distúrbio interpretativo leva alguns leitores a confundir as opiniões de um personagem com as do autor. Por exemplo, alguns leitores poderiam pensar que Shakespeare quisesse trocar seu reino por um cavalo, ou outros que Dostoievski achasse correto matar senhoras idosas. Essas interpretações enganadas são mais comuns do que se poderia imaginar. Eu mesmo recebo muitas cartas de leitores inspiradas por tais confusões.

É concebível, portanto, que Tavecchio pertença à categoria de leitores semelhantes aos públicos sicilianos de antigamente, que, no final dos tradicionais espetáculos de bonecos, atacavam o traiçoeiro Gano di Maganza, apesar de ele ser apenas uma marionete. Ou talvez haja algo mais por trás disso.

Anos atrás, uma mulher costumava enviar a mim pastas cheias de cópias de documentos que ela havia remetido a vários tribunais italianos, assim como ao primeiro-ministro e ao presidente, protestando contra uma suposta injustiça que havia sofrido. Por que ela me enviava tais documentos? Segundo ela, sua posição era reforçada pelo fato de que, em todos os artigos que eu escrevia, sempre tomava o seu lado em uma discussão.

Em outras palavras, fosse qual fosse o assunto do meu texto --culinária ou teologia, Shakespeare ou o Pato Donald--, essa mulher via uma clara referência a seus próprios problemas.

Se Tavecchio for um leitor como ela, significaria que ele não é apenas um boquirroto que cospe velhos e cansados estereótipos, mas um lunático completo, que, não importa o que ele esteja lendo, encontra algo para alimentar seu ódio por mulheres, gays, pessoas de cor e judeus.

Eu não gosto de futebol --não digo o esporte em si, que é uma atividade nobre, mas tudo o que o rodeia. E se a maioria das pessoas nesse mundo quer manter Tavecchio como seu líder e luz condutora, bem, sorte delas.