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Colorado subverte machismo e chega à elite com bateria mais gay de SP

Ícaro Nogueira, ritmista da escola de samba Colorado do Brás, é gay assumido - Edson Lopes Jr./UOL
Ícaro Nogueira, ritmista da escola de samba Colorado do Brás, é gay assumido Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o UOL, em São Paulo

15/01/2019 04h00

A escola que abrirá o Carnaval paulistano deste ano quase acabou em 2011, sequer tem uma quadra para ensaiar e deve boa parte da sua impressionante ressurreição a um público bem específico: os gays.

Quem conta essa história é um homem relativamente jovem, careca, braços musculosos e tatuados, camisa regata, boné e uma expressão que os cariocas chamariam de ligeiramente marrenta. Antônio Carlos Borges, presidente da recém-promovida ao Grupo Especial Colorado do Brás, faz questão de pontuar um a um os gays que ajudaram na reconstrução da agremiação fundada em 1975. "Hoje, os responsáveis pelos nossos maiores quesitos são todos gays assumidos. O carnavalesco, o coreógrafo de comissão de frente, o diretor de ganzá, o primeiro mestre-sala, o nosso melhor costureiro."

Certamente São Paulo tem outras escolas de samba onde o público LGBT é bem-vindo e acolhido, mas a Colorado do Brás é, muito possivelmente, a campeã nesse quesito. Reduto histórico de homens -héteros, de preferência-, as baterias das escolas de samba vêm aos poucos mudando suas composições, mas, na Colorado, esse processo está em um nível visivelmente mais avançado. Seu mestre, Allan Meira, diz que pelo menos 70 dos 214 integrantes são assumidamente gays.

"São pessoas que fazem parte do projeto da escola. Se eu fosse um cara preconceituoso, teria de abrir mão de todos esses profissionais. Não há motivos para destratá-los, são pessoas maravilhosas", diz o presidente Borges. Ele acredita que um dos motivos para o ambiente mais inclusivo é a maciça presença de jovens universitários na Colorado (embora faça questão de pontuar que não é o único).

De fato, impressiona assistir a um ensaio da escola. A bateria chega a ter 80% de universitários em sua formação. São jovens, alguns imberbes, que mais parecem integrantes de uma bateria de jogos universitários, mas que terão a responsabilidade de desfilar em uma escola do Grupo Especial em 2019. Se a Colorado chegou até aqui, por que duvidar da capacidade deles?

Para Borges, a ideia de que bateria é coisa para "macho" ainda está atrelada ao velho conceito do vigor físico. "A bateria é o coração da escola. Você não pode tocar 20 minutinhos e dizer que cansou. Daí vem essa ideia: será que o cara gay, ou uma mulher, segura o ritmo uma hora e pouco na avenida? Isso é uma coisa antiga, não foi criada pelos mestres de bateria de hoje. E não faz sentido, porque é uma questão de preparo. Você pode ser um fortão e, se não se preparar, não aguentar."

Grande responsável por abrir as portas da escola aos universitários, o mestre de bateria Meira costuma brincar dizendo que a Colorado tem "a bateria mais LGBT de São Paulo". Ele diz que, usualmente, ao público LGBT masculino só é "recomendado" tocar chocalho, restrição que não existe na escola. "Aqui, tocam de tudo: chocalho, tamborim, agogô, surdo."

Meira afirma o que deveria ser óbvio: que sua única preocupação é com a qualidade dos ritmistas e garante que nunca presenciou um único caso de preconceito entre os integrantes da bateria. 
Preconceito que, no mundo das escolas de samba, raramente é explícito, mas existe.

Tabu em queda

Daniel Souza, diretor de bateria da Colorado, é frequentador de escolas de samba desde os 13 anos. Passou pela X-9 Paulistana e pela Unidos de Vila Maria, entre outras agremiações, e chegou até a namorar uma rainha de bateria antes de "sair do armário" (para a surpresa de ninguém, como ele deixa claro durante a conversa).

 "Acho que esse tabu dos gays na bateria está caindo, graças a Deus, mas já vi bastante preconceito. Era muito difícil, por exemplo, você ver um gay tocando surdo. Gay toca chocalho, alguns tocam tamborim. Eu comecei tocando tamborim e, naquela época, ouvia todo tipo de piada referente a isso", diz Souza. "Hoje, isso está mudando, mas em alguns lugares o acesso do público LGBT à bateria ainda é limitado."

A Colorado do Brás aposta na diversidade - Edson Lopes Jr./UOL - Edson Lopes Jr./UOL
A Colorado do Brás aposta na diversidade em sua bateria
Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

Como exemplo do quão liberal é a Colorado, Souza conta que até hoje não foi repreendido por dançar ou fazer coreografias, enquanto, em outras escolas, já pediram que ele, digamos, segurasse um pouco a onda. "Também já tivemos problemas em uma escola de samba onde fomos nos apresentar e um casal de amigos deu um selinho. Mas isso varia muito de lugar para lugar. Na X-9 e na Vila Maria, por exemplo, eu poderia beijar e andar de mão dadas sem problemas."

Se ele já escutou que "bateria não é lugar de viado"? "Sim. Já ouvi."

Ritmista da Colorado, Ícaro Nogueira também frequenta escolas desde criança. Começou na Nenê de Vila Matilde, pela qual desfilou pela primeira vez em 2014, e também é gay assumido. "Nunca fui explicitamente discriminado. Mas, dependendo da escola, você se sente mais inibido. O Carnaval é muito aberto ao público LGBT, mas, no resto do tempo, quando você está ali ensaiando, a maneira como você se porta pode gerar algum tipo de repercussão."

 O ritmista deixa claro que também nunca viu alguém apanhar ou ser expulso de uma escola de samba por ser gay, mas as piadinhas e o preconceito velado estão ali do mesmo modo que no metrô, nas ruas e em outros ambientes de trabalho.

"Existe, principalmente dentro da bateria, uma coisa da masculinidade muito forte. Como disse o Daniel, tem escolas em que você chega para tocar determinado instrumento e te dizem que você não pode. Como se, para tocá-lo, você precisasse ser um cara fortão, não um viadinho fraco."

Nogueira diz que conhece escolas quase tão liberais quanto a Colorado, caso da Nenê, mas o que compõe esse "quase" são detalhes nada desimportantes. "Aqui, eu poderia levantar a voz se visse algo errado, ou escutasse uma piadinha. Não acho que teria essa liberdade em outras escolas."

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