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Bloco descolado do Rio invade subúrbio e evidencia cidade partida

Lola Ferreira

Colaboração para o UOL, no Rio de Janeiro

27/01/2019 18h54

A Central do Brasil é ponto de partida ou chegada para aproximadamente 600 mil pessoas que passam por ali em dias úteis. Muito além de uma estação terminal dos cinco ramais de trens do estado do Rio de Janeiro, o local se tornou o epicentro do transporte público carioca, por onde passam as duas linhas de metrô da cidade, inúmeras linhas municipais e dezenas de linhas intermunicipais de ônibus. Mas neste domingo (27) a Central do Brasil foi ponto de partida para uma rara experiência: acostumados com os cenários paradisíacos da zona sul carioca ou do boêmio centro da cidade, centenas de foliões fantasiados, purpurinados e alcoolizados tomaram um trem em direção à Duque de Caxias, na Baixada Fluminense para curtir um bloco de Carnaval.

A data marca o aniversário de Tarcísio "Cisão", um dos fundadores do bloco Amigos da Onça. Conhecido principalmente pelas fantasias elaboradas, coreografias populares e repertório de agradar qualquer um, o Amigos da Onça desfila já há sete anos na capital fluminense, mas não tem dia, horário ou lugar certo para desfilar: é um dos blocos secretos do Carnaval do Rio, mas nos últimos anos o rugido tem ecoado principalmente pelas madrugadas. O último fim de semana de Janeiro é, então, uma oportunidade de cantar os últimos hits de funk, as marchinhas históricas e alguns clássicos do axé à luz do dia, ainda que fora dos ambientes já tradicionais. 

Por volta das 7h, os primeiros foliões começaram a chegar na estação. O figurino denunciava que aqueles decidiram emendar a noite no bloco. Salto alto, maquiagem pesada e uma maquiagem improvisada de purpurina, ali no chão da Central do Brasil, contrastavam com aqueles mais comprometidos com a causa, que chegavam a partir de 7h30. Com a missão de incorporar o tema "drinks", muitas meninas fantasiadas de frutas, algumas de gelo e poucas de bebidas famosas, como Gin Tônica, começaram a lotar o espaço. 

Alguns dos foliões deixaram bem explícito que não estavam habituados a tomar trens. Uma tela anunciava que o trem partiria da plataforma 12, e um dedicado rapaz avisava aos seus amigos que chegavam para comprar bilhetes de passagem: "Pessoal, para o nosso trem é só na [bilheteria] 12". Mas as duas coisas não se relacionam: o bilhete poderia ser comprado em qualquer caixa. 

Por volta das 8h20 as primeiras pessoas atravessavam as catracas em direção à plataforma de partida do trem que passaria por Duque de Caxias. Animadas, duas amigas incorporadas com o tema da festa falavam sobre a empolgação de curtir o desfile pela primeira vez, mas pecavam na geografia. Enquanto a primeira perguntava onde exatamente ficava a cidade, a segunda respondia: "Não sei bem, parece que é perto de Madureira". Madureira é um bairro da capital, cerca de 20 quilômetros distante do município que as moças conheceriam naquela manhã.

Às 8h56, com apenas um minuto de atraso, o trem partiu lotado. A viagem de aproximadamente uma hora foi embalada pelo repertório típico do Amigos da Onça, com hits como "Vai, Malandra" e marchinhas como "Índio quer Apito". Anfitrião de uma festa gigante, Cisão aceitava os calorosos abraços e cumprimentos pelo aniversário. Nem os chacoalhões de uma linha ferroviária precarizada tiraram o sorriso do rosto do aniversariante e dos convidados presentes. Clima de total confraternização e festa. 

Cortejo

Ao sair dos vagões em Duque de Caxias, a animação continuou na plataforma, nas escadas e na praça. Depois de uma pequena parada para organização dos músicos, o cortejo do bloco seguiu pelas ruas da cidade. Os organizadores, amigos do Cisão e também alguns componentes do Amigos da Onça, se desdobravam em orientar os foliões a não obstruir o trânsito e em puxar o carrinho de cerveja -- grátis para quem quisesse. Conforme o bloco saía do turbilhão central e se emaranhava às ruas estreitas dos bairros próximos, alguns moradores olhavam de janelas ou portões o movimento e o batuque que se avizinhava. Ainda no início do cortejo, dona Gilda e dona Valdenice contaram à reportagem que todos os anos esperam o bloco passar: "A gente viu ele crescer, conhecemos a mãe dele ainda jovem. Todo mundo aqui na rua espera passar, porque é muito divertido e ele nunca deixa de fazer", conta dona Gilda sobre o "neto" Cisão. 

Com temperatura batendo os 36 graus, a regularidade da festa já prepara os moradores: nos portões alguns deixavam disponíveis mangueiras para quem quisesse se refrescar, e os mais receptivos abriam suas casas para as meninas que precisassem usar o banheiro. Até um lava-jato ganhou nova função e jogou água durante uma das pausas do cortejo. 

Outra artimanha comum para driblar o calor era a cerveja. Como aquela gratuita não foi o suficiente para todo o público presente, os foliões abordavam os vendedores ambulantes em busca das marcas estrangeiras, comuns em festas de rua no centro da cidade ou na zona sul. A maioria dos vendedores despistava e conseguia vender as marcas populares brasileiras mesmo, mas um deles fez de tudo para agradar o público e correu para um supermercado próximo. Voltou com engradados e mais engradados de uma das tais marcas estrangeiras -- especialmente a holandesa -- e vendeu tudo em pouco tempo. 

Conforme o bloco coloria as ruas da cidade, mais moradores empolgados com o cortejo abriam suas casas. O clima era de muita paz e tranquilidade, com destaque para os banhos improvisados de mangueira na rua. Crianças brincavam e eram cumprimentadas por todo mundo, e não houve registro de nenhuma confusão ou discussão. A maioria dos frequentadores se conheciam, e aqueles que chegavam pela primeira vez eram muito bem recebidos. 

Quando o cortejo já se encaminhava para o fim, as reclamações sobre calor, distância e fome ficaram mais frequentes, mas nada que pudesse impedi-los de continuar dançando as coreografias e cantando, claro. Em determinado ponto, o cortejo alcançou um rio poluído, e os restos de lixo que boiavam na água foram motivos de piada por dois rapazes: "Já fazem parte da paisagem", um deles disse, e voltaram a dançar. 

Depois de quatro horas de cortejo, e algumas desistências pelo caminho, o bloco chegou à casa da mãe de Cisão, a Dona Rê, como é carinhosamente chamada. Mesmo tendo de lidar com toda a logística do evento, Cisão se preocupou em organizar um espaço acolhedor. Para driblar o calor, mangueiras disponíveis com água fresca e uma lona em que qualquer um poderia brincar, deslizar e se molhar. Ali, adultos e crianças dividiam um pouquinho do alívio depois da andança.

Para recepcionar, matar a fome e a sede, havia cerveja, cachaça e caldinho de feijão. Música alta, vizinhos no portão e a rua cheia davam o tom do que é uma tradicional festa de família no subúrbio quando todos chegaram por volta de 13h30. Não tinha como não se sentir em casa. A organização avisava à boca miúda que o evento não tinha hora para acabar, e apesar do último trem passar pela estação dali a pouco, às 19h, o público presente não demonstrava vontade de ir embora. "Agora que vai começar!", repetiam os músicos, que não se abateram pelo cansaço. 

O Amigos da Onça continua seus ensaios oficiais de verão na próxima terça-feira. Durante todo o mês de fevereiro a festa acontece semanalmente no centro do Rio de Janeiro. De acordo com a agenda oficial de eventos, não há indícios de outros eventos na Baixada Fluminense. No próximo 29 de janeiro, o bloco Agytoê embala parte do ensaio com muito axé. A entrada custa a partir de R$ 15.
 

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