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Bloco carioca Tá Pirando, Pirado, Pirou! ensaia para desfile terapêutico

Michel Alecrim

Do UOL, do Rio

09/02/2019 18h20

Numa era em que ninguém ligava para frases politicamente incorretas, fez sucesso canção de Dorival Caymmi bem provocativa. "Quem não gosta de samba bom sujeito não é. Ou é ruim da cabeça ou doente do pé", diz a letra de "Samba da Minha Terra", um hit da década de 1940. E é fato que quem adere ao ritmo melhora sua saúde mental.

A prova disso é o bem-sucedido bloco carioca Tá Pirando, Pirado, Pirou!, que realizou neste sábado (9), no Rio, o ensaio geral para o seu 15º Carnaval. Nele, pacientes psiquiátricos compõem, cantam, tocam e confeccionam fantasias, máscaras, adereços e alegorias.

O bloco surgiu de uma ideia de um interno do Instituto Pinel, na Urca, no fim de 2004, e desde então tem se mostrado uma excelente forma de terapia. Tanto que dos dez sambas que concorreram hoje no concurso do Carnaval deste ano, sete eram de compositores que passam por tratamento psiquiátrico.

No Tá Pirando, os pacientes participam de oficinas para a confecção de todo o material do desfile, realizado sempre na Avenida Pasteur, que termina na subida do Pão de Açúcar. Mas grande parte dos integrantes não tem essa passagem pelas unidades de saúde mental, pois a alegria dos pirados atrai foliões de todos os tipos.  

O compositor Hamilton de Jesus Assunção, de 54 anos, foi um dos concorrentes na eleição para o samba-enredo do bloco. Ele se trata contra a esquizofrenia há 36 anos e diz que participar do Carnaval mudou sua vida. "É uma relação mais humanizada, sem danos", conta o sambista.

O enredo do Tá Pirando deste ano homenageia o escritor Lima Barreto (1881-1922). O autor chegou a ser interno de hospício que funcionava na avenida onde hoje o bloco desfila. "Na Terra dos Bruzundangas: Lima Barreto Visionário" faz menção a famoso livro do autor e relembra a crítica social realizada por ele na época.

A poetisa e atriz Elisa Lucinda recitou dois poemas de sua autoria no palco da casa de shows Rio Scenarium, onde foi realizado o ensaio. "É uma questão fundamental combater o preconceito contra a loucura e os problemas mentais e emocionais. É maravilhoso ver essas pessoas se reencontrando através da arte", afirmou Elisa.

Outro ator que participou do ensaio foi Flávio Bauraqui, que viveu o escritor homenageado no teatro. Ele também subiu no palco para interpretar um dos sambas concorrentes.

"O Carnaval é uma realização de liberdade, democracia e alegria. É um momento em que nos livramos dos preconceitos", declarou o ator, que acredita também no poder da arte como cura.

Na festa foi feito o lançamento da camisa do bloco, com desenhos dos personagens do livro "Os Bruzundangas". O autor foi o artista plástico Samy Ferreira Chagas, de 41 anos, outro usuário do sistema de saúde mental. Ele também confeccionou um boneco representando o malandro para desfilar.

O propósito do projeto é envolver os pacientes em todas as etapas do bloco, num processo que dura o inteiro. João Batista dos Santos, de 63 anos, ajudou a confeccionar um dos estandartes do desfile. Nos primeiros ensaios do Tá Pirando, ele estava internado no Pinel e não conseguiu a liberação dos médicos para desfilar, o que só foi possível no segundo ano.

"Na primeira vez eu só ensaiava no pátio. Depois que tive alta comecei a desfilar. Nunca mais precisei me internar de novo. Com certeza, foi graças à minha participação no Carnaval", conta o gráfico aposentado. O desfile do Tá Pirando está marcado para o dia 24, com concentração a partir das 15h.

Atualmente, pelo menos outros dois blocos aderiram à filosofia de que o samba é um ótimo tratamento para a mente, integrando pacientes ao mundo do carnaval.

O Loucura Suburbana desfila no Engenho de Dentro, Zona Norte, há quase 20 anos, com pacientes do Instituto Municipal Nise da Silveira e de outros usuários da rede pública de saúde mental da cidade. Tem escolha do samba marcada para a próxima quinta-feira (14), com 23 inscritos, e o desfile ocorrerá no dia 28.

?Há uma integração muito bonita com os moradores do bairro e pessoas de outros pontos da cidade. No ano passado, o bloco reuniu cerca de mil pessoas?, conta a coordenadora Ariadne de Moura Mendes.

Já em Bangu, na Zona Oeste, desfila o Zona Mental. Este ano, o bloco vai falar dos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). A agremiação conta com a participação também de parentes de pacientes que se tratam em centros de atendimento da região.

"Nosso bloco é bastante politizado e este ano vamos defender uma causa importante que é a luta antimanicomial", afirma a coordenadora Débora Resende. O Zona Mental tem desfile marcado para o dia 26.

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