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Do arco e flecha ao laptop: O 'tempo amazônico'

12/03/2010 12h26

Neidinha, como todo mundo chama Ivaneide Cardozo por aqui, gosta de dizer, sempre, "o tempo amazônico" é diferente.

E eu acho que qualquer um entende o que ela quer dizer com isso, em princípio. Mas só mesmo passando umas poucas e boas para saber, com todas as letras, o que é que ela chama de "tempo amazônico".

Neidinha recorda seu ditado enquanto esperamos que passe a chuva torrencial que começou a cair e não parou mais, deixando pouca opção senão estirar-nos nas redes da varanda da casa do líder Suruí, Almir, na aldeia de Lapetanha, a pouco mais de uma hora de Cacoal.

É uma espécie de pausa forçada no trabalho. Mas contra a força da natureza não há o que fazer.

Lapetanha, a aldeia mais próxima da estrada de asfalto, segue seu ritmo habitual. Poucas casas de madeira entre as quais se destacam uma ou outra maloca típica, de teto de palha seca. Sou informado de que a maior, que podia receber até 200 pessoas, pegou fogo não muito tempo atrás.

Antigamente, a aldeia se estendia até Cacoal e os índios eram 5 mil, me dizem. O contato com o homem branco, em 1969, dizimou grande parte da etnia, que chegou a ter apenas 250 membros e agora tem 1.350.

Fiz e refiz inúmeras vezes imagens das crianças que brincam na aldeia e dos cães que me olham com cara de bocejo enquanto caminho de lá para cá de tripé na mão. Adiante, uma mulher faz um colar de coquinhos enquanto ferve pupunha e castanha. Mais cedo, antes da chuva, outra lavava roupa em um tanque com uma máquina de lavar do lado.

Demos o azar de desencontrar uns membros da tribo que estão monitorando as florestas da reserva Sete de Setembro usando GPS. Agora, é preciso esperar até amanhã. O tempo amazônico.

Cabe-nos experimentar a vida na aldeia. Jogar conversa fora aqui e ali com os moradores. Os jovens demais não falam português ainda, só tupi mondé; os adolescentes e adultos jovens falam as duas línguas; os mais velhos, sempre falaram só o tupi mondé.

Do nada, a oportunidade para fazer gravações aparece, como quando Arildo, um dos coordenadores de cultura dos Suruí, disse que nos mostraria o centro de cultura do vilarejo, que possui alguns computadores.

Mal ele abriu a sala, um enxame de garotos e garotas de oito ou dez anos voou para os dois computadores nos quais um programa dá informações sobre as aves nativas e reproduz o canto dos pássaros.

Os garotos ainda são muito jovens para receber treinamento em computação, mas demonstram um entusiasmo incrível. Arildo me ajuda com o tupi mondé para conversar com um deles Mais tarde, repassando as gravações do dia, divirto-me com a festa de "passarinhos" que ilustra o pano de fundo. Isso foi na "hora do computador", se é que posso falar assim. Mas tudo no seu devido tempo.

Antes, quando o "tempo amazônico" da Neidinha ainda nos "impunha" a contemplação, os passarinhos que povoaram minhas gravações foram outros, os de verdade. Com o microfone em punho para captar sons para um programa de rádio que prometi para o serviço em inglês, me embrenhei no mato e deixei o equipamento "ouvir" os sons da floresta.

Foi uma sinfonia de cantos. Lembrei-me de uma rádio londrina que só toca o som dos passarinhos - a rádio "Birdsong", vejam que criativo - e que estourou na audiência, sugerindo o quanto nossa corrida vida moderna sente falta disso no dia-a-dia.

Deixei-me levar pela suavidade dos sons, e se não fosse pela bufada de um cavalo, a coisa mais barulhenta que soou em muitos minutos, teria continuado por outros mais.

E ainda há os que não têm tempo para perceber essas coisas simples da vida. Para esses, uma boa dose de "tempo amazônico", tempo para parar e contemplar a existência, não faria nada mal.