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Os pilotos que arriscam a vida cruzando o Atlântico em monomotores

Poonam Taneja

Da BBC News

12/10/2015 11h12

O ramo do voo de translado é uma indústria lucrativa e de alto risco. Sem passageiros pagantes, pilotos de elite entregam pequenas aeronaves através de oceanos e continentes - distâncias que esses aviões não foram planejados para voar.

Cruzar sozinho o oceano Atlântico em um pequeno monomotor, em baixas altitudes e em meio a condições climáticas extremas, não é algo para cardíacos. Coisas podem dar errado - e muitas vezes é o que acontece.

A indústria de voos de traslado é formada por um grupo reduzido de aviadores, muitos dos quais realizaram centenas e até milhares de voos, entregando aeronaves novas ou reparadas em destinos remotos.

A repórter da BBC Poonam Taneja conta que o pai era um piloto de traslado. E diz que sua vida de criança era dominada pela aviação - os feriados eram dedicados a aviões e voos.

Taneja diz que suas memórias mais antigas são de brinquedos empilhados no cockpit de uma aeronave Cessna. Enquanto o pai aumentava suas horas de voo, levava a filha em voos vespertinos para a França - sempre com a pequena bicicleta da filha no bagageiro.

Um giro pelas praias francesas de Le Touquet costumava ser a recompensa dela por enfrentar sem reclamações um eventual voo turbulento.

Depois, durante a adolescência, Taneja adorava ouvir as histórias das aventuras aéreas do pai. Embora tivesse noção do perigo, detalhes sobre passagens por países em guerra e tempestades de gelo sobre o Atlântico eram censuradas para evitar ainda mais preocupações.

O pai da repórter morreu em 1999, quando o avião que estava entregando colidiu com montanhas no Canadá.

Após a morte do pai, Taneja teve pouca relação com o mundo da aviação. Os campos de pouso que tinham sido uma referência na infância se tornaram uma memória distante, associada ao sentimento de perda.

Voos para poucos

Com o passar do tempo, cresceu a curiosidade da repórter sobre a vida do pai como um piloto de traslado e a paixão dele pela atividade. E ela começou a investigar esse mundo desconhecido da aviação.

Aeronaves são vendidas e reparadas por todo o Reino Unido, em um processo que pode levar meses e até anos.

E é preciso transportar esses aviões até seus donos - onde quer que eles estejam.

"Em qualquer aeronave que esteja é preciso encontrar uma maneira de vencer as distâncias, mesmo aquelas que pequenos aviões normalmente não conseguiriam", afirma o piloto Julian Storey, 43 anos.

Esses são aviões que tipicamente percorrem de 320 km a 645 km por voo. Mas a travessia mais curta do Atlântico tem 1.120 km.

E como essas pequenas aeronaves são despressurizadas, voos acima de 3 mil metros não são recomendados. Isso as torna mais vulneráveis a condições climáticas extremas, pois possuem menor capacidade para sobrevoar nuvens de tempestade e de gelo. Já aviões comerciais podem voar a altitudes de até 12 mil metros.

Em um enorme hangar cheio de aviões e helicópteros no aeroporto de Biggin Hill, em Kent, na Inglaterra, o piloto Storey mostra um pequeno avião dos anos 1960 que está sendo restaurado.

O piloto espera entregar a aeronave aos novos donos assim que a restauração termine e o modelo seja vendido. Há um ano e meio, ele transportou dois modelos semelhantes da Escócia até Cape Cod, nos Estados Unidos.

"Isso é voar de verdade", ele diz. "Quando estou no clima de aventura, tudo dá certo."

Antes da decolagem, a aeronave terá de ser carregada com tanques de combustível necessários à jornada.

Condições extremas

Trata-se de um avião lento, sem os equipamentos de ponta de aeronaves modernas para lidar com gelo e clima extremo. "Em grande parte, é uma questão de julgamento, técnica e experiência para lidar com a natureza e tentar sobreviver", afirma Storey.

Taneja diz que isso é que o sempre temeu, sobretudo quando o pai voava sobre os mares.

Ela afirma que ele sempre levava equipamentos de sobrevivência - uma precaução que todos os pilotos de voos de traslado tomam, diante da possibilidade de pousos forçados no mar.

"A principal causa de morte no oceano é a hipotermia", diz o piloto Dave Henderson, 60 anos, que fez mais de cem travessias pelo Atlântico em pequenos aviões.

"Se você acabar na água, o mais importante é entrar em seu bote em forma de barraca, mas eu também tenho um kit de sobrevivência de neoprene, que isola o corpo totalmente, dando algumas horas de sobrevida nessas condições."

Ele diz conhecer outros pilotos de translados que sobreviveram após aterrissagens no mar, mas reconhece que não é um assunto agradável.

Em uma feira de aviação em Sywell, na Inglaterra, a repórter encontra o piloto fazendo checagens de segurança em um bimotor Piper Aerostar. O avião pertence a um cliente que deseja recebê-lo em Fort Lauderdale, no Estado norte-americano da Flórida.

A entrega irá custar ao dono cerca de R$ 75 mil. Após as checagens e a inclusão do kit de sobrevivência, o avião está pronto para o piloto Joe Drury voar até a Flórida, numa jornada que deverá levar quatro dias.

Plano de voo

O plano é voar até o aeroporto de Wick, na Escócia, para abastecimento, e depois a Reykjavik, na Islândia. O trecho seguinte é até a Groenlândia, para Narsarsuaq, no sul, ou mais ao norte em Kulusuk, a depender do tempo. De lá até Bangor, no Estado do Maine, nos EUA, e depois por toda a costa leste americana.

A repórter da BBC diz lembrar das menções do pai a Reykjavik e a Narsarsuaq durante preparativos de suas viagens.

Narsarsuaq também é conhecido como um dos aeroportos mais perigosos do mundo - o pouso requer uma aproximação por um fiorde, uma grande entrada de mar entre montanhas e geleiras.

A rota é conhecida como a rota de traslado do Atlântico Norte. Foi descoberta por pilotos durante a Segunda Guerra Mundial para transportar aviões de guerra da América do Norte à Europa.

Transportar um avião pelo Atlântico é um dos testes mais duros para piloto e aeronave. Mas esse não é o único trecho desafiador nesse tipo de voo.

O piloto de traslado Robin Durie já enfrentou uma falha parcial de motor durante um voo sobre o deserto do Saara, dois incidentes em que os co-pilotos desmaiaram por causa da altitude e uma decolagem em meio a tiros no Oriente Médio.

Aventura e segurança

"Toda viagem tem um elemento de aventura", afirma. "Você precisa ser um piloto que saiba lidar com todos os aspectos de um voo."

"Eu simplesmente amo voar, e acredito que a diferença entre um voo de traslado e um voo comercial de rotina é que você tem que conduzir essas aeronaves de uma maneira quase física. É realmente uma questão de alavanca e leme que tem grande apelo."

Durie é casado e tem um bebê. A paternidade influenciou sua decisão de evitar voos mais arriscados. Todos os pilotos de traslado consultados pela repórter da BBC mencionam amigos ou colegas que morreram durante o trabalho.

E todos concordam que os voos de traslado não são uma carreira para aventureiros ou para demonstrações de coragem.

Segurança tem pouco a ver com sorte. "Tudo é uma questão de julgamento - tomar as decisões certas. O tempo está bom? O vento está muito forte? Tenho combustível para enfrentar esse vento?", diz Storey.

A repórter Poonam Taneja diz que os encontros com os pilotos a fizeram relembrar da importância da aviação em sua vida e da paixão do pai pela atividade. "Estou feliz por ele ter tido a oportunidade de fazer o que amava - ser um piloto de traslado."