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O que eram a bebida de Satã e o instrumento do diabo, e o que ensinam sobre inovação

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Imagem: iStock

06/07/2016 16h09

Você aceitaria um convite feito com o instrumento do diabo para almoçar comida embalsamada seguida por uma bebida de Satã?

Ou se sentiria mais confortável se alguém lhe convidasse por telefone para comer em sua casa pratos com ingredientes congelados e, depois, tomar um café?

Quando os telefones apareceram, os suecos o chamaram de "instrumento do diabo", porque "representava uma ameaça para as relações comunitárias", conta Calestous Juma, do Centro Belfer para Ciência e Assuntos Internacionais da Harvard Kennedy School, nos Estados Unidos, à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

"Em vez de as pessoas se encontrarem para conversar frente a frente, o aparelho as distanciava."

Durante 16 anos, Juma estudou seis séculos de controvérsias criadas pela inovação e consolidou o que aprendeu no livro "Inovação e seus inimigos: por que as pessoas resistem às novas tecnologias".

"Aqueles que não gostavam de um produto tratavam de demonizá-los, dando a eles nomes pouco atraentes."

Ecos dessa estratégia podem ser escutados hoje em dia: os alimentos transgênicos são apelidados, por exemplo, como "frankencomida", ou comida de Frankenstein.

Outra tática eram as campanhas para desprestigiar uma invenção. O trator, por exemplo, foi um dos alvos.

"Eles foram muito polêmicos porque realmente transformaram a vida nas fazendas. As pessoas costumavam usar animais como fonte de energia, e uma parte do trabalho de produção era alimentá-los. Os animais estavam completamente integrados ao dia a dia", afirma Juma.

"Além disso, os animais se reproduzem. Então, as pessoas tinham controle sobre as fontes de energia. A chegada dos tratores significou que os fazendeiros tinham que obter o maquinário de outra pessoa e comprar peças."

Houve protestos, "e com razão: os animais se reproduziam, os tratores se depreciavam". E isso nos leva de volta ao exemplo dos alimentos transgênicos, umas das várias grandes polêmicas que enfrentamos atualmente.

Catástrofe ou salvação?

"A esperança de satisfazer as necessidades da crescente população mundial em um planeta em meio a mudanças climáticas depende da introdução de tecnologias transformadoras. Mas o progresso pode ser impedido pela obstrução irracional à mudança", destaca Juma.

No entanto, essa obstrução nem sempre pode ser tachada como irracional. Por exemplo, o medo de que os cultivos dependam das grandes empresas multinacionais que são donas das sementes ou de que as plantas pouco a pouco percam sua capacidade de se reproduzirem naturalmente não devem ser qualificadas assim.

Como no caso do trator, algo muito básico está em jogo: a comida. "Quando as pessoas se opõem a um produto, têm razões para isso. É o que digo no livro. Não devemos desconsiderar a oposição dizendo se tratar de ignorantes. Devemos escutar e considerar se concordamos com seus argumentos ou não", explica Juma.

"As pessoas não se opõem às coisas porque elas são novas, mas porque percebem um prejuízo em potencial."

A bebida do diabo

Juma identificou quatro categorias que se aplicam a muitos casos de resistência a mudanças: intuição, interesses criados, argumentos intelectuais e fatores psicológicos.

"O café é um exemplo interessante, porque mostra diferentes razões de oposição", destaca o diretor do Projeto de Ciência, Tecnologia e Globalização de Harvard.

"Foi introduzido no Oriente Médio e teve um impacto no equilíbrio de poder, porque as pessoas começaram a trocar opiniões nas cafeterias em vez de esperar para ouvi-las de autoridades religiosas. Por sua vez, essas autoridades começaram a sentir que estavam perdendo influência."

Não eram trocadas só opiniões, mas também informações.

"Houve um incidente, por exemplo, na Turquia, onde o sultão Murad 4º matou seu pai e se nomeou como líder. Fez isso em segredo, mas não conseguiu evitar que o rumor fosse discutido nos cafés. Quando soube, fechou todos esses locais."

Neste caso, foi uma questão de poder. "Mas logo o café começou a entrar na Europa. A oposição a ele era diferente: no Reino Unido e na Alemanha, se devia à competição com a cerveja. Na França e na Itália, com o vinho e o leite."

Era um tipo diferente de oposição: a econômica.

Todos podem ter razão

Juma destaca que, em muitos casos, trata-se de pontos de vista diferentes, mas justificados.

"Quando se comprovou que o (inseticida) DDT era nocivo para algumas aves no hemisfério norte, surgiu uma proposta de vetá-lo. O que não se levou em conta é que não havia outra alternativa para controlar mosquitos portadores da malária nos trópicos", diz o especialista.

"Há relatos de que, em certas áreas, a incidência da doença tem aumentado. É um caso em que não houve um diálogo mais amplo. Poderíamos ter pensado em desenvolver um substituto para controlar a malária. Realmente é preciso haver um diálogo global - se não fazemos isso, as coisas podem terminar muito mal."

A destruição criativa acelerada

O livro de Juma será lançado em um evento muito apropriado: a conferência da Sociedade Schumpeter, em Montreal, no Canadá.

Joseph Schumpeter foi o economista que popularizou o conceito idealizado pelo sociólogo alemão Werner Sombart da "destruição criativa", o efeito que tem a inovação na economia de mercado.

O novo destrói o velho, e os empreendedores são os que impulsionam um crescimento econômico sustentável a longo prazo.

Além disso, "Schumpeter tinha consciência de que, quando surgem novas tecnologias, seus produtores ficam expostos a ataques ou a ter sua criação bloqueada".

"E essa parte não tem sido muito explorada: a oposição."

Foi esse aspecto que Juma desenvolveu, e toda a história reunida por ele permite vislumbrar como será o futuro.

"Historicamente, as novas tecnologias têm impactos negativos, mas também fazem contribuições positivas. Se leva em conta que acabam com empregos, também criam outros. No passado, o ritmo de destruição e criação era quase o mesmo, e por isso a economia podia continuar a crescer", afirma.

"Suspeito que hoje em dia o ritmo de mudança é mais acelerado que a capacidade de adaptação da sociedade."

Por isso, ele teme que as consequências de novas tecnologias serão mais dramáticas do que ocorreu até agora.

"Isso intensificará o debate e a oposição, a ponto de até as que são benéficas podem vir a ser sufocadas", alerta Juma, para quem os criadores têm a responsabilidade de trabalhar com a sociedade para evitar que isso aconteça.

"Quando a comunidade tem a oportunidade de participar do processo de tomada de decisões, não recusa. Outro ponto é que o impacto de quase todas as tecnologias era restrito, a uma comunidade, a uma região. Hoje é global, por isso precisamos de um diálogo global."