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A história secreta dos óculos de raio-X

Promessa de uma visão de raio-X nunca caiu em desuso, mas até que ponto pode se tornar realidade? - BBC/Science Photo Library
Promessa de uma visão de raio-X nunca caiu em desuso, mas até que ponto pode se tornar realidade? Imagem: BBC/Science Photo Library

Chris Baraniuk

Da BBC Future

09/09/2016 06h39

"Eu vi minha morte!", teria exclamado Anna Bertha Rontgen após ver a primeira fotografia de raio-X já feita - uma imagem dos ossos de sua mão. O marido de Anna, o medico alemão Wilhelm Rontgen, descobriu os raios-X em 1895.

A notícia de que alguém havia encontrado um jeito de ver através da pele e da carne humanas para observar o esqueleto por baixo, sem tocar a pessoa, foi uma sensação internacional.

Logo imagens de raio-X revelando ossos e até a sombra de órgãos internos estampavam jornais pelo mundo.

Não demorou para essa tecnologia se incorporar à cultura popular. Os raios-X eram vistos como algo sexy e como uma espécie de superpoder - uma ideia que se tornaria imortal nos quadrinhos do Super-Homem nos anos 1940.

Mas as pessoas sempre esperaram que esse recurso pudesse um dia estar disponível para o público em geral. A tecnologia era imaginada como um tipo de óculos de raio-X que pudesse ver através das paredes. Presente na ficção científica, essa possibilidade pode agora estar próxima de virar realidade.

Nos meses e anos que se seguiram à descoberta de Rontgen, não faltaram ideias sobre o que as pessoas poderiam fazer com os raios-X. Para citar um exemplo, uma revista na cidade escocesa de Dundee informou em 1896 como o chefe local de polícia estava refletindo sobre adaptar a tecnologia de raio-X para "propósitos de investigação".

Um aparelho de raios-X portátil como um binóculo poderia ser usado, segundo a revista, para espionar locais onde traficantes de bebidas alcoolicas, proibidas à época, poderiam estar efetuando suas vendas.

"Havia muita ficção sobre raios-X naquela época", diz Keith Williams, professor de Língua Inglesa na Universidade de Dundee. "Um artigo sobre ondas elétricas acabava com o jornalista de ciência especulando sobre a possibilidade de ver por entre paredes até os espaços mais privados das pessoas."

Também havia demonstrações de raio-X mais espalhafatosas.

 

Uma exposição prometia aos visitantes a habilidade de "ver através de uma placa de metal" ou "contar as moedas em sua bolsa".

 

Na verdade, contudo, experimentos iniciais com raios-X estavam limitados a aplicações médicas e científicas. Pesquisadores se divertiam produzindo imagens de esqueletos de animais ou aprimorando a técnica para criar imagens mais nítidas.

O próprio Rontgen já havia feito experimentos com um tubo de Crookes - instrumento científico que acelera elétrons em um feixe conhecido como raio catódico. Uma pequena porção da energia desse processo é liberada na forma de fótons, partículas elementares da luz.

No espectro eletromagnético, o comprimento das ondas de fótons define se elas são, por exemplo, ondas de rádio ou, no caso do experimento de Rontgen, raios-X. Uma tela fluorescente já tinha revelado que os raios de Rontgen estavam atravessando alguns materiais, como músculos, mas não outros - como ossos.

Foto Raio-X BBC - BBC/Advertising Archive - BBC/Advertising Archive
Anúncios prometiam que quem usasse os óculos poderia ver através de roupas - o que, claro, não era verdade
Imagem: BBC/Advertising Archive

Embora os efeitos nocivos da exposição frequente a raios-X tenham sido logo descobertos, a promessa de uma visão de raio-X nunca caiu em desuso.

Óculos de raio-X, um item comumente vendido com revistas e HQs, foram patenteados em 1906. Os óculos não usam raios-X, claro, mas criam uma espécie de visão dupla na qual a sobreposição de objetos sugere - de maneira pouco convincente - que tais itens tenham tido a estrutura interna revelada.

Mas em 1998 a promessa dos óculos de raio-X teve uma virada tecnológica inesperada. A Sony estva divulgando uma nova linha de câmeras com recursos de visão noturna - uma função batizada como "NightShot".

Alguns entusiastas disseram que, sob certas circunstâncias, era possível ver por entre as roupas das pessoas. Houve até um boato sobre um recall que a Sony teria feito para recolher alguns modelos diante da repercussão ruim - na verdade a empresa fez apenas algumas mudanças no design dos equipamentos.

Mas os equipamentos de visão noturna continuaram sendo usados em experimentos. Um YouTuber publicou uma suposta demonstração de como uma camera da Sony de 2002 poderia ser modificada com fita adesiva e um filtro infravermelho para alcançar o desejado "efeito raio-X".

O vídeo mostra como a capa de um livro - e até o sutiã da mulher do autor do video - podiam ser vistos através de sua camiseta preta. "Aí está", ele diz, "visão de raio-X."

A visão noturna funciona detectando luz infravermelha, que humanos normalmente não veem, e convertendo essa energia em ondas de luz visível.

Pode ser que os tecidos usados nesse exemplo revelem mais quando vistos em infravermelho, sugere Alistair Brown, gerente de produto na empresa de imagens térmicas e noturnas Thermoteknix. Isso poderia fazer com que parecessem bem diferentes do que pelas ondas de luz visíveis captadas por nossos olhos, afirma.

Vince Houghton, um ex-militar americano e historiador no Museu Internacional da Espionagem, em Washington, usava visão noturna e imagens térmicas com frequência no Exército. Mas ele diz que as "capacidades de raio-X" desses equipamentos são bem limitadas.

"Você pode ver através de estruturas, mas nada muito além disso" Vince Houghton

"Se você tem uma estrutura sólida, é muito difícil ver através dela com infravermelho".

Mas isso não significa que não haja uma demanda por essa tecnologia. Houghton cita como exemplo uma situação de tomada de reféns. "Se você puder ver internamente quando finalmente decide por uma inflitração, você sabe onde os bandidos estão."

Mas alguém já criou algo que possa fazer isso? A resposta, surpreendentemente, é sim. Enquanto os raios-X continuam sendo algo com o que apenas especialistas conseguem lidar, companhias militares experimentam há muito tempo com eles. E tanto que a ideia levantada pelo xerife de Dundee do século 19 finalmente se tornou realidade.

"Os primeiros experimentos foram essas grandes máquinas que não eram úteis em termos de operações policiais ou militares", diz Houghton. Mas hoje, policiais e militares têm a opção de comprar uma pistola de raio-X - um aparelho portátil que pode ser usado para averiguar veículos, quartos, bolsas e pacotes.

Uma tecnologia muito mais barata e segura que oferece 'habilidades de óculos de raio-X' já está presente em sua casa - o wi-fi

"Enquanto um operador foca no alvo, uma imagem aparece em tempo real no tablet do sistema", diz a empresa American Science and Engineering em seu site. Também há uma página onde é possível fazer uma demonstração virtual da tecnologia.

Ainda assim, a pistola Mini Z não está disponível ao público em geral e custa US$ 50 mil.

Há também preocupação com o risco de saúde pública decorrentes do uso indiscriminado de aparelhos de raio-X. Também há críticas sobre invasão de privacidade, já que alguns dispositivos conseguem ver através das roupas. Diante dessas inquietações, a legislação nos Estados Unidos hoje veta a formação de imagens detalhadas nesses equipamentos.

Raio-X caseiro

Contudo, uma tecnologia muito mais barata e segura que oferece "habilidades de óculos de raio-X" já está presente em sua casa - o wi-fi.

No ano passado, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT na sigla em inglês), nos EUA, publicou um vídeo que mostra como um transmissor de wi-fi pode ser usado para criar uma imagem irregular de alguém através de uma superfície sólida.

"Quando você envia um sinal de wi-fi, ele reflete tudo, e esses reflexos voltam a você", diz Dina Katabi, professora de Engenharia Elétrica e Computação no MIT. Um software consegue analisar esses reflexos de sinal e produzir uma imagem do objeto do qual elas emanaram.

"Nós podemos detectar como pessoas se movem por um espaço, onde se sentam, como andam, e também identificar quedas - algo importante para idosos", acrescenta Katabi.

Para Houghton, a tecnologia tem um leque de usos em potencial.

"Sei que tecnologia semelhante já está sendo usada para inspeção de construções", afirma. "Você consegue verificar coisas como cabeamento interno e estruturas."

É possível, naturalmente, que agências militares e de inteligência já estejam empregando versões avançadas dessa tecnologia para ações de vigilância.

"Qualquer coisa que você vê na mídia está dez anos atrás do que as agências de inteligência estão usando", afirma Houghton.

Ele diz que isso significa que provavelmente já completamos um ciclo no sonho centenário dos óculos de raio-X. Se os "óculos inteligentes" um dia se tornarem populares, não é difícil imaginar versões em miniatura dessas tecnologias sendo incorporadas a esses acessórios.

Ou seja: o que um dia foi uma ideia boba numa velha revista pode logo se tornar realidade. Até o Super-Homem ficaria impressionado.