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A ilha do litoral de São Paulo com a segunda maior concentração de cobras do planeta

Isolamento geográfico levou ao surgimento de nova espécie de jararaca que só existe em ilha do litoral paulista - Marcelo Ribeiro Duarte
Isolamento geográfico levou ao surgimento de nova espécie de jararaca que só existe em ilha do litoral paulista Imagem: Marcelo Ribeiro Duarte

Evanildo da Silveira - De São Paulo para a BBC Brasil

De São Paulo para a BBC Brasil

24/02/2018 20h47

Uma pequena ilha rochosa, escarpada, sem praias e de difícil acesso, localizada a 35 km do litoral de São Paulo, entre as cidades de Peruíbe e Itanhaém, tem chamado a atenção ao longo dos último cinco séculos por uma característica insólita: é habitada quase que exclusivamente por uma espécie de cobra, a jararaca-ilhoa (Bothrops insularis).

A Ilha da Queimada Grande, conhecida como Ilha das Cobras, se destaca ainda por ter a segunda maior concentração desses animais por área no mundo: cerca de 45 cobras por hectare - mais ou menos equivalente ao tamanho de um campo de futebol -, perdendo apenas para a Ilha de Shedao, na China.

Com comprimento e largura máximos de 1.500 e 500 metros, respectivamente, e altitude que não supera os 200 metros, a Ilha das Cobras, de 43 hectares, foi descoberta em 1532, pela expedição colonizadora de Martim Afonso de Souza.

De acordo com as biólogas Karina Nunes Kasperoviczus, hoje na Universidade de Sydney, na Austrália, e Selma Maria de Almeida-Santos, do Instituto Butantan, provavelmente Afonso de Souza e seus oficiais protagonizaram o primeiro caso de depredação do local.

No artigo científico Instituto Butantan e a jararaca-ilhoa: cem anos de história, mitos e ciência, publicado nos Cadernos de História da Ciência, do Instituto Butantan, elas contam que, de passagem pela costa sudeste do Brasil, os navegadores aportaram na ilha, caçaram diversas fragatas e mergulhões e, antes de voltarem aos navios, receosos de má sorte, atearam fogo no local.

Não existe, no entanto, registro de que durante a permanência por lá Martim Afonso de Souza e seus homens tenham tido qualquer contato com a Bothrops insularis.

Segundo Karina e Selma, a prática de atear fogo à ilha se tornou corriqueira algum tempo depois. "No final do século 19, a Marinha do Brasil implantou um farol lá, cuja manutenção era realizada por faroleiros que residiam no local", escrevem.

"Com medo das serpentes, a própria Marinha colocou por diversas vezes fogo na mata na tentativa de acabar com a população excessiva delas. O nome 'Queimada Grande' é resultado dessas recorrentes queimadas, que, por vezes, eram tão fortes que podiam ser avistadas do continente."

Evolução

A história da Ilha das Cobras é bem mais antiga, no entanto. Ela se formou no final da última era glacial, há cerca de 11 mil anos, quando o nível do mar subiu, separando aquele morro (que fazia parte da Serra do Mar) do continente, transformando-o numa ilha e isolando uma população de jararacas comuns (Bothrops jararaca).

Ao longo dos milhares de anos seguintes, a espécie se diferenciou de suas parentes de terra firme e se transformou na Bothrops insularis.

Segundo o pesquisador e especialista em animais peçonhentos Vidal Haddad Júnior, da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o isolamento e as condições geográficas da ilha lentamente contribuíram com a seleção das características mais favoráveis ao ambiente, criando uma espécie diferente das jararacas continentais.

"Ela é menor e menos pesada, para facilitar sua locomoção e a caçada diurna nas árvores", explica. "Sua cauda adquiriu capacidade preênsil (ou seja, de se agarrar a algo) e a dentição ganhou um aspecto mais curvo, para prender as aves mais facilmente e não soltá-las enquanto o veneno age."

Por ser uma cobra que vive sobretudo em árvores (ou arborícola), a jararaca-ilhoa desenvolveu outras características evolutivas únicas.

"Sua pele se tornou mais elástica do que a de suas parentes do continente, uma vez que ela sobe em árvores", explica Otávio Marques, pesquisador e diretor do Laboratório de Ecologia e Evolução do Instituto Butantan, que realizou várias pesquisas com essa serpente.

"Além disso, como ela ergue mais a cabeça, seu coração fica mais próximo dessa parte de sua anatomia, para bombear com mais facilidade o sangue para o cérebro."

Nova espécie

Não é de hoje que o Instituto Butantan estuda a ilha e a jararaca-ilhoa. O primeiro lote dessa espécie foi recebido pela instituição em 1911, enviado pelo zelador do farol, que residia no local, Antônio Esperidião da Silva. Elas logo começaram a ser estudadas pelo herpetólogo João Florêncio Gomes, que não chegou a concluir o trabalho, pois morreu em 1919, aos 33 anos.

O pesquisador Afrânio do Amaral deu continuidade às pesquisas e, em 1922, descreveu cientificamente a nova espécie. "Ele logo descobriu que ela se alimentava quase exclusivamente de pássaros, ao contrário das espécies do continente, que predam pequenos mamíferos e répteis", conta Vidal Haddad.

Amaral descobriu ainda que a peçonha destas jararacas era muito mais ativa em aves e altamente potente, o que despertou o interesse sobre a espécie, que só existe na ilha.

"O veneno da jararaca-ilhoa é mais tóxico para aves do que para mamíferos", explica o biólogo Marcelo Ribeiro Duarte, do Laboratório de Coleções Zoológicas do Instituto Butantan. "O que prova a grande adaptabilidade da espécie."

A Bothrops insularis mede entre meio metro e um metro, com as fêmeas sendo ligeiramente maiores. "Como a fauna da ilha é muito escassa, não existindo roedores nem outros mamíferos (com exceção de morcegos), os adultos da espécie se alimentam de aves migratórias (os pássaros residentes não são predados)", diz Haddad. "Os filhotes comem pequenos lagartos, anfíbios e artrópodes, como as lacraias, por exemplo."

Outra característica dessa serpente é que ela é vivípara (não põe ovos, mas gesta a prole de maneira semelhantes aos mamíferos) e dá à luz 10 filhotes no período quente do ano.

Mitos e lendas

Talvez por ser muito numerosa e altamente venenosa, a jararaca-ilhoa é objeto de diversos mitos e lendas. Uma delas diz que as cobras foram colocadas lá por piratas, para proteger um tesouro escondido.

De acordo com outra, um faroleiro e sua família foram mortos por suas picadas. Mas isso não ocorreu. No máximo foram mortos alguns animais domésticos, como cães, gatos e galinhas.

De qualquer forma, não existe mais o risco de algum faroleiro ser morto por uma picada da jararaca-ilhoa. O farol foi automatizado em 1925 e sua manutenção é feita uma vez por ano por uma equipe da Marinha do Brasil. O acesso à ilha é estritamente controlado e requer de autorização do Governo Federal. Esta é dada principalmente para pesquisadores.

"Apesar do óbvio risco que as cobras representam para quem entrar no local desavisado, ele quase não existe na prática", tranquiliza Haddad. "(A ilha) é desabitada e quem a visita está ciente dos cuidados que deve tomar para evitar picadas."

Ameaça de extinção

De acordo com ele, hoje quem tem que ter cuidado são as cobras. Apesar de a Ilha da Queimada Grande ser uma Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) e pertencer à Área de Proteção Ambiental (APA) de Cananéia-Iguape-Peruíbe, a jararaca-ilhoa está criticamente ameaçada de Extinção.

A espécie faz parte da Lista Nacional das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção e da Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas da organização União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).

A ameaça de extinção decorre das queimadas, feitas por pescadores que querem desembarcar no local, e pela biopirataria, ou seja, a captura ilegal para venda. Um exemplar da cobra pode alcançar R$ 30 mil no mercado negro.

"Se pensarmos na capacidade de venenos serem a base de medicamentos e na fantástica evolução e adaptação das cobras em um ambiente isolado, elas são mais um tesouro a ser preservado do que uma ameaça aos humanos", diz Haddad.

Só isso já justificaria o interesse científico na Bothrops insularis. Mas há outras razões. "O isolamento de cobras a partir das grandes massas continentais é uma oportunidade única para se estabelecerem relações evolutivas sob condições severas na maioria das vezes, como, por exemplo, falta de fontes de água e escassez de presas", explica Duarte.

"Além disso, a presença dessa espécie isolada é um testemunho dos fenômenos de flutuação do nível dos oceanos no período Pleistoceno (1,8 milhão a 11 mil anos atrás)."