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Férias da doença, demasiadamente breves

Por Dena Rifkin*<br>The New York Times

05/05/2008 17h25

Quando entrei em seu quarto de hospital, seu entusiasmo parecia tão fora do lugar, tão estranho, que meu primeiro instinto foi buscar uma causa patológica para isso. Talvez os remédios estivessem afetando seu cérebro; as altas doses de esteróides que são administradas depois de transplantes de rim podem fazer isso.

Logicamente, ele tinha o direito de estar eufórico. Depois de muitos anos na lista de espera, sua vez havia chegado. Ele agarrou meu braço e apontou para a urina coletada no tubo ao lado da sua cama, a primeira evidência visível de seu novo rim. "Veja só! Olhe bem para isso! Funcionando como mágica!"

Em poucos dias, ele estava caminhando pelos corredores, abraçando todos que via; depois, recebeu alta para ir para casa e aproveitar sua nova vida.

Eu tive a sorte de conhecê-lo em seu dia mais feliz. Minhas lembranças daqueles que saem bem do hospital geralmente se apagam mais rápido do que as imagens daqueles que passam por um longo sofrimento e morrem. Mas com esse paciente foi diferente. Eu não o preparei para o transplante, nem realizei a cirurgia, nem mesmo cuidei dele por muito tempo, mas levei comigo um pouco da sua vitória.

Assim, quando ouvi seu nome novamente, quase um ano depois, fiquei imediatamente curiosa.

"Eu vou matá-lo!", a enfermeira que coordenava a assistência ao transplante gesticulava exageradamente. Olhei para os números na tela. O novo rim mal estava funcionando. "Ele parou de vir à clínica - telefonei para ele durante semanas. Agora, veja!".

Aconteceu que ele parou de tomar seus remédios imunossupressores cerca de dois meses antes. Seu corpo estava rejeitando o rim. Ele deu entrada no hospital para um tratamento na tentativa de salvar suas funções renais.

Eu me candidatei para fazer a biopsia do transplante; tendo sido parte do sucesso, queria entender a falha. Seu pós-operatório havia sido tranqüilo. Ele não sofreu efeitos colaterais com os remédios, tinha uma excelente cobertura do seguro, todo o apoio da carinhosa família. Tudo que tinha que fazer era tomar comprimidos duas vezes por dia e estaria livre das sessões de diálise com quatro horas de duração que estiveram presentes em sua vida por anos e anos. Ele podia comer e beber o que quisesse, dormir, em vez de ir para a diálise pela manhã, viajar - tudo, desde que tomasse os comprimidos.

Enquanto esperávamos pela biopsia, ele falou. Estava envergonhado de ter parado de tomar os comprimidos, tão envergonhado que evitou ver seu médico mesmo sentindo dores novamente. Quando ele finalmente retornou, foi c pego no flagra.

Começou quando ele "pulou" uma dose de comprimidos por acidente. Não aconteceu nada. "Foi como ser libertado de uma jaula", ele me disse. "Você olha para trás e ninguém está te perseguindo. Então, você continua, olha para trás, e ninguém te perseguindo. Eu me sentia bem, estava livre".

Ele viajou por uma semana, sem os comprimidos. Não aconteceu nada. "Não parecia de jeito nenhum que eu estava doente", disse, com uma felicidade melancólica.

Então, enquanto esperava a biópsia, ele contou mais sobre aquele ano livre de diálises. Ele havia "pulado" outras coisas no passado - uma sessão de diálise, uma dose de remédio para pressão - e nada de mal aconteceu. Ele achou que talvez pudesse viver com menos comprimidos, menos visitas ao médico. O transplante não era para que ele se sentisse bem?

Fiquei zangada com ele por todo o esforço em vão de prepará-lo para o transplante. Fiquei com raiva por ele não ter cuidado de um rim que tanta gente gostaria de ter. Fiquei com chateada por ele ter desapontado a ele mesmo, e por ter desapontado a mim.

Eu sabia que a medicina high-tech não podia solucionar todos os problemas, que muitas vidas "salvas" no hospital foram perdidas, lentamente, fora dele. Mas ele parecia tão diferente. Parecia tão inteligente, agradecido, feliz. Parecia entender a sorte que tinha.

Percebi que deve haver algo mais profundo que eu ainda não entendi sobre estar doente, apesar de trabalhar com pessoas doentes todos os dias. Causa e efeito, intervenções e resultados, custos e benefícios: isso é fácil de analisar quando é outra pessoa que tem que tomar os comprimidos duas vezes por dia, sentar na cadeira por horas, tirar sangue toda semana.

Para o meu paciente, estar preso a uma máquina de diálise era um tipo de doença, e tomar comprimidos que o protegiam de uma nova insuficiência renal era outra. Talvez para ele houvesse somente um tipo de liberdade e ela se concretizou durante alguns dias nas férias: nada de comprimidos, nenhum sintoma, nada de médico nem de doença.

Dena Rifkin é médica em Boston e está terminando sua pesquisa sobre doenças renais.