Topo

The New York Times: Expressando nossa individualidade, como fazem as E. coli

Carl Zimmer<br>The New York Times

07/05/2008 18h00

Nós, humanos, somos diferentes uns dos outros em infinitos aspectos. Somos tímidos e ousados, sardentos e branquelos, caminhoneiros e cabeleireiros, budistas e presbiterianos. Podemos morrer de câncer na terceira série ou viver um século. Temos impressões digitais.

Cientistas têm uma compreensão limitada de como surgem essas diversidades. Algumas delas resultam das diferentes experiências que temos, do nosso período no ventre materno, passando pela infância, até a idade madura. Essas influências incluem coisas como os livros que lemos e o ar que respiramos. Nossa diversidade também tem origem em nossos genes - as milhões de diferenças tipográficas entre um genoma e outro.

Damos muito mais mérito à natureza do que à formação quando se trata de individualidade. É por isso que a idéia de clones reprodutivos causa tanto horror. Se genes significam identidade, então uma pessoa que carrega o DNA de outra não tem identidade própria.

The New York Times
Colônias de E. coli, bactérias que vivem oas montes no intestino humano e se comportam de maneiras diferentes, mesmo quando as condições são idênticas
No entanto, há um grande equívoco nesse modo de pensamento, que não nos permite enxergar como a biologia - humana ou não - realmente funciona. Um ótimo exemplo que refuta esse raciocínio é a E. coli, uma espécie de bactéria que vive aos milhões no intestino de cada pessoa, inofensivamente.

Uma E. coli típica contém cerca de 4 mil genes (nós temos cerca de 20 mil). Alimentando-se de açúcares, o microorganismo cresce até que esteja pronto para se dividir em dois. Ele produz duas cópias de seu genoma, quase sempre conseguindo criar cópias perfeitas do original. O microorganismo individual se divide em dois, e cada nova E. coli recebe um dos idênticos genomas. Essas duas bactérias são, em outras palavras, clones.

Portanto, obviamente, a E. coli é só natureza e nada de formação. Uma colônia descendente de uma única ancestral E. coli é composta somente de bilhões de primos idênticos, todos reagindo ao mundo com o mesmo conjunto de genes.

Por mais que soe plausível, isso está longe de ser verdade. Uma colônia de bactérias E. coli geneticamente idênticas é, na verdade, uma multidão de indivíduos. Em condições idênticas, vão se comportar de formas distintas. Elas têm impressões digitais próprias.

Se duas bactérias E. coli geneticamente idênticas estão nadando lado a lado, por exemplo, uma pode desistir, enquanto a outra continua girando suas caudas em forma de saca-rolhas.

Para medir a força da bactéria, o falecido biólogo Daniel Koshland uma vez colou bactérias geneticamente idênticas em uma lâmina de microscópio. Elas flutuaram na água presas por suas caudas. Koshland ofereceu às bactérias aspartato, um aminoácido que as atrai e as motiva a nadar. Presas à lâmina, as bactérias só conseguiam fazer piruetas. Koshland descobriu que alguns clones E. coli giravam por duas vezes mais tempo que outros.

Mas a E. coli também expressa sua individualidade de várias outras formas.

Em circunstâncias idênticas, alguns clones se cobrem de pelos pegajosos que os permitem grudar em células hospedeiras, enquanto outros permanecem pelados. Alimente uma colônia de E. coli com lactose (o açúcar presente no leite) e algumas vão responder sugando a substância através de canais especiais e digerindo-a com enzimas especiais. Outras vão torcer seus narizes microbianos.

Essas peculiaridades da personalidade das E. coli podem representar a diferença entre a vida e a morte para a bactéria. Em tempos de estresse, alguns membros da colônia reagem produzindo milhares de moléculas tóxicas e depois explodem, matando as bactérias que não são da família. No entanto, seus clones companheiros sobrevivem e se desenvolvem com a ausência de competição.

Alguns vírus deslizam para dentro das E. coli através de um dos vários tipos de canais em suas membranas. Em uma colônia de bactérias geneticamente idênticas, algumas podem estar cobertas desses canais, como uma almofadinha de alfinete. Outras não têm nada disso. Os vírus vão matar os clones vulneráveis, enquanto outros clones sobrevivem.

As peculiaridades das E. coli também podem representar uma questão de vida ou morte para nós. Algumas variações delas causam infecções no intestino, na bexiga, no sangue e até mesmo no cérebro. Em muitos casos, os médicos tentam matar as bactérias com antibióticos, que perturbam as atividades normais de seus genes e proteínas. Em uma colônia de E. coli suscetível, um antibiótico poderoso irá exterminar a maioria das bactérias, mas não todas. Algumas sobreviverão.

As sobreviventes escapam da morte porque estão presas em um estranho estado declinar chamado de persistência. Elas quase não produzem proteínas e crescem muito pouco, quando crescem. Antibióticos não conseguem eliminar as bactérias persistentes porque não há nada nelas para atacar.

A diferença entre células normais e persistentes pode ser encontrada em seu DNA. Depois que células persistentes sobrevivem ao ataque de antibióticos, algumas de suas crias voltam ao ritmo de crescimento normal e reconstroem a colônia. A maioria de seus descendentes serão bactérias E. coli normais. Mas algumas serão persistentes. A colônia continua sendo o mesmo grupo heterogêneo de clones.

A chave para entender as "impressões digitais" das E. coli é reconhecer que as bactérias não são máquinas simples. Ao contrário de cabos e transistor, suas moléculas são flexíveis, agitadas e imprevisíveis. Em um aparelho eletrônico, como rádio ou computador, os elétrons fluem em uma corrente estável através dos circuitos da máquina, mas as moléculas de E. coli colidem entre si e perambulam.

Quando uma E. coli começa a usar um gene para fabricar uma proteína, não produz uma quantidade crescente e regular. Ela explode, jorrando as proteínas segundo suas variações de humor. Um clone pode produzir meia dúzia de cópias de uma proteína em uma hora, enquanto o clone vizinho não produz nenhum.

Michael Elowitz, físico da Caltech, demonstrou a situação anterior em um refinado experimento. Ele e seus colegas estimularam E. coli a produzir suas proteínas para se alimentar de lactose. Dr. Elowitz e seus colegas adicionaram genes extras às bactérias para que, quando elas produzissem proteínas digestivas de lactose, também emitissem luz.

As bactérias, descobriu Elowitz, não produziram um brilho uniforme. Elas tremeluziam, às vezes vivamente, às vezes de forma leve. E quando Elowitz fotografou a colônia, ela não era um mar de luzes uniforme. Alguns microorganismos estavam escuros, enquanto outros brilhavam com toda intensidade.

Essas explosões barulhentas podem ter efeitos a longo prazo sobre como a E. coli se comporta. Ela está equilibrada delicadamente entre estados muito diferentes, e um leve empurrão pode levá-la para uma forma ou outra.

Em algumas situações, por exemplo, é muito fácil fazer com que a E. coli seja uma consumidora de lactose ávida ou uma relutante. Por puro acaso, um microorganismo pode produzir muitos canais de sucção de lactose, fazendo com que ele sugue muito do açúcar. A lactose pode puxar proteínas repressoras para longe dos genes da E. coli, fazendo com que o microorganismo produza ainda mais canais e enzimas. Isso faz com que mais lactose seja levada para dentro da célula. O microorganismo se torna preso em um ciclo consumo excessivo de açúcar.

Por outro lado, o mesmo microorganismo, por puro acaso, pode não produzir essa quantidade de canais. Ele pode não sugar nenhuma lactose a mais. As poucas moléculas de lactose que conseguem se infiltrar através de suas membranas são muito poucas para arrastar as proteínas repressoras. Seus genes que digerem lactose permanecem desligados, e ele não poderá saborear um pouquinho de açúcar. O microorganismo está preso em seu próprio ciclo vicioso negativo.

Outros estudos sugerem que o ruído imprevisível no maquinário celular da E. coli também é responsável pela persistência, cobertura peluda, suicídio altruísta e vulnerabilidade a vírus. A grande pergunta para muitos cientistas é por que a E. coli evoluiu a ponto de aquele ruído poder produzir mudanças tão drásticas em sua biologia.

Modelos matemáticos sugerem que as E. coli usam o ruído como uma forma de se protegerem. Uma colônia não pode simplesmente esperar até que estejam submersas em antibióticos para passar à persistência. Estariam mortas antes disso. Em vez disso, o ruído faz com que algumas delas se tornem persistentes. Se elas forem derrubadas pelos antibióticos, pelo menos algumas irão sobreviver. Se os antibióticos nunca aparecerem, a maioria das bactérias poderá continuar a crescer e se dividir.

As E. coli parecem seguir uma regra universal. Outros microorganismos exploram o ruído, assim como o fazem as moscas, as minhocas e os seres humanos. Algumas das células fotossensíveis dos nossos olhos são ajustadas para luz verde, e outras para luz vermelha. A escolha é uma questão de sorte. Uma proteína pode ativar aleatoriamente o gene verde ou o vermelho, mas não os dois.

Nos nossos narizes, células nervosas podem escolher entre centenas de tipos diferentes de receptores olfativos. Cada célula escolhe um, e evidências sugerem que a escolha é controlada pela explosão imprevisível de proteínas dentro de cada neurônio. É muito mais econômico deixar o ruído tomar a decisão do que fazer proteínas que possam controlar centenas de genes individuais de receptores olfativos.

Genes idênticos também podem se comportar de maneiras distintas em nossas células porque um pouco do nosso DNA está coberto por átomos de carbono e hidrogênio chamados de grupos metil. Os grupos metil podem controlar se os genes fazem proteínas ou permanecem em silêncio. Em humanos (assim como em outros organismos como as E. coli), grupos metil às vezes se separam do DNA ou se ligam a novos pontos. O acaso puro pode ser responsável por mudar alguns grupos metil; nutrientes e toxinas podem mudar outros.

Gêmeos idênticos podem ter genes praticamente idênticos, mas seus grupos metil são diferenciados ao nascer e se tornam cada vez mais distintos com o passar dos anos. Como mudam os padrões, as pessoas se tornam mais ou menos vulneráveis ao câncer e outras doenças. Essa experiência pode ser a razão pela qual gêmeos idênticos muitas vezes morrem com muitos anos de diferença. É que eles não são nem um pouco idênticos.

Esses padrões diferentes também são a razão pela qual clones de humanos e animais não podem nunca ser réplicas perfeitas. O DNA de um gato pardo chamado Rainbow foi usado para criar o primeiro gatinho clonado, chamado de Cc. Mas Cc não é uma cópia em carbono de Rainbow. Rainbow é branco com manchas marrons, bronze e douradas. Cc tem listras cinzas. Raibow é tímido. Cc é extrovertido. Rainbow é pesado e Cc é elegante. Mudanças nos grupos metil provavelmente respondem por algumas dessas diferenças. Clones também podem ser alterados pelo padrão único de explosões de proteínas em suas células. São as próprias moléculas que os formam os fazem indivíduos.

A individualidade das E. coli deveria ser, no mínimo, um aviso para aqueles que resumem a natureza humana a qualquer forma de puro determinismo genético. Seres vivos são mais que simples programas executados por software genéticos. Até mesmo em microorganismos minúsculos, os mesmos genes e a mesma rede genética podem levar a destinos diferentes.