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NYT: Saudáveis, até o dia em que em que não somos mais

Por Dra. Abigail Zuger<br>The New York Times

02/10/2008 19h54

Ela é tão frágil e fugaz quanto uma bolha de sabão e muda de forma com a facilidade de uma lâmpada de lava. Ela é tão difícil de definir quanto o amor e a felicidade, e até mais difícil de agarrar e manter.

É da sua saúde que estamos falando, aquela coisa intangível que você provavelmente acha que pessoas como eu podem ajudá-lo a conseguir e manter. Por que será que todos nós ainda insistimos em tratar a saúde como um bem negociável em banco? É a solidez da nossa carne e dos nossos ossos? Os laboratórios divulgam resultados de exames como extratos bancários? De qualquer forma, a fábula aqui é que, com a obediência aplicada a conselhos de especialistas, praticamente qualquer um pode guardar um pouco de saúde para usar no futuro.

The New York Times
Não é mais o bastante se sentir bem hoje; não somos saudáveis se não nos sentirmos bem amanhã, o dia depois de amanhã, até o dia em que não vamos mais acordar
Na verdade, a saúde é o oposto de uma commodity. Ela passa voando rapidamente, como as fadas, desafiando todas as boas intenções e previsões. Ninguém consegue realmente articular o que a palavra significa; duas pessoas não entendem o conceito de saúde exatamente da mesma forma. E isso inclui você e seu médico.

Considere todas as coisas que podem estar erradas com você quando você diz que é saudável. Você pode ter olhos que não focam mais na página impressa. Pode estar cuidando de um braço ou perna quebrados; ou pode até não ter um braço ou uma perna. Você pode ter acne ou uma boca cheia de cáries. Suas unhas dos dedos do pé podem estar se desintegrando em fungos. Você pode ter rugas e um tremor. Ainda assim, você se acha legitimamente saudável.

Mas um dia algumas partículas virais chegam até o seu nariz. Depois vem o nariz entupido, febre, tosse. Imediatamente, você liga para o chefe. "Não vou trabalhar hoje", você murmura. "Muito doente".

Claro, você sabe que não está realmente doente, não no sentido que negue sua saúde atual. Você é saudável nos intervalos das doenças, doente nos intervalos da saúde. Seus ativos bancários estão seguros.

Então, é uma jornada complicada chegar à essência do que compõe a saúde e o que a destrói. O corpo continua seu tique-taque através de muito caos. Até no fundo dos nossos órgãos internos, onde a saúde é ameaçada com mais freqüência, as coisas podem ficar muito ruins antes de cruzarmos o rio entre a saúde e a doença.

Mulheres que recebem diagnóstico de câncer de mama, por exemplo, geralmente são bem saudáveis. É aquela parte do corpo que está doente. Depois de eliminá-la, elas devem se submeter a um tratamento que faz com que elas fiquem enjoadas e enfermas, para que elas possam permanecer saudáveis. Mas, é claro, algumas não conseguem voltar a esse estado, porque o terror de uma doença recorrente pode ele mesmo negar a saúde.

Quando infecções epidêmicas chegaram à cidade há algum tempo, geralmente estava claro quem estava doente e quem não estava. Ainda assim, no meio de surtos de febre tifóide em Nova York no começo do século 20, uma das pessoas saudáveis era Mary Mallon, ou "Mary Tifóide", a cozinheira que carregava o germe que infectou dezenas de outras pessoas, e ainda assim nunca ficou doente. Ela morreu em quarentena, sem tifóide: a saúde da comunidade irá sempre vencer seu próprio estoque de saúde.

Insuficiência renal e do fígado claramente decretam o fim da saúde. Pelo menos antes era assim; hoje esse limite não é tão claro. Você tem seu órgão recentemente transplantado e ele funciona perfeitamente, desde que você tome um monte de pílulas para tornar seu sistema imunológico submisso. Você está doente? Está bem? Você está em uma ilhota no meio do rio, entre a cruz e a espada. Ainda assim, você acorda na manhã seguinte e se sente realmente bem.

Alguns gostam de chamar a pressão alta de "assassino invisível". Você acha que está bem com ela; quase todo mundo acha também. Como seu médico pacientemente explica, é simplesmente uma questão de risco. Seu risco de ataque cardíaco ou derrame é mais alto do que o necessário.

Medicamentos contra pressão alta diminuem esse risco. Eles não fazem absolutamente nada para sua saúde em si, mas, cada vez mais, saúde e risco estão se misturando. À medida que nos tornamos mais saudáveis, o conceito de saúde infla para adquirir uma quarta dimensão do tempo. Não é mais o bastante se sentir bem hoje; não somos saudáveis se não nos sentirmos bem amanhã, o dia depois de amanhã, até o dia em que não vamos mais acordar.

Vôo direto da saúde até a morte, sem escalas: esse é nosso objetivo hoje.

Uma paciente e eu temos conduzido diálogos cada vez mais existenciais sobre esses assuntos há anos. Ela tem uma infecção causada por HIV e um sistema imunológico tão defasado que é realmente extraordinário para ela estar tão saudável.

Ela é saudável, sem dúvida. Ela se sente bem. No passado, um médico a alertou que ela teria somente mais um ano de vida. Depois de 10 anos, ela perdeu a confiança nas previsões de especialistas.

Pela minha própria experiência com pacientes como ela, sei o futuro nada agradável que com certeza a espreita. Ela não tem interesse em deixar minhas impressões levá-la ao outro lado do rio. Ela só sabe que se sente bem. Além disso, ela tentou todas as drogas que mudariam seus riscos, e todas elas fazem com que ela se sinta doente.

Levantamos esse assunto várias vezes. Ela sempre anuncia o mesmo paradoxo: eu, com meus alertas melancólicos e minhas novas idéias de medicamentos, estou tentando deixá-la doente. Ela está determinada a permanecer saudável.

Saudável para infectar outras pessoas, eu observo. Saudável para deixar um filho órfão. Saudável até ela ficar tão doente quanto ninguém precisa ficar.

Saudável aqui e agora, ela insiste. Saudável o suficiente para não vomitar toda manhã, para poder trabalhar, pagar as contas e comprar uma bateria para o filho. Saudável para se sentir ela mesma.

Fica claro que existe saúde e saúde, e às vezes elas duas simplesmente não se encontram. Enquanto isso, cada vez que olho seus exames clínicos, fico doente....