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"Comercialismo" gera ansiedade para médicos, afirma cardiologista americano

Sandeep Jauhar*<br>The New York Times

09/07/2009 13h24

Para cobrir as despesas da minha família crescente, recentemente comecei outro trabalho, numa clínica médica particular, no Queens, em NY. Nas manhãs de sábado, passo por lojas de comida chinesa e estabelecimentos que oferecem divórcios a baixo custo. Prossigo para um edifício comercial, localizado num bairro de classe média.

Muitas vezes, reflito sobre o quanto esse trabalho é diferente do meu emprego regular, num centro médico acadêmico, em Long Island. Isso me leva, cada vez mais, a pensar sobre a quantidade de dinheiro que minha prática está gerando.

Um paciente chega, com dores no peito. É difícil não solicitar um teste de estresse cardíaco quando a câmera nuclear está no recinto ao lado. Palpitações? Um monitor Holter - e um ecocardiograma. Não é fácil ignorar o reembolso quando prescrevemos exames, especialmente numa prática cuja metade da receita vai para despesas gerais.

Poucas pessoas acreditaram em recentes alegações feitas por líderes da indústria hospitalar, de seguros, medicamentos e aparelhos médicos, para eliminar bilhões de dólares em gastos desnecessários. Já ouvimos essa antes. Sem mudanças fundamentais no financiamento à saúde, essa promessa, como as que a precederam, será impossível de ser cumprida. O que algumas pessoas chamam de desperdício, outras chamam de renda.

É questionável que médicos e outros profissionais de saúde voluntariamente possam reduzir sua renda (mesmo se parte dessa renda seja gerada por gastos exagerados). A maioria dos médicos que conheço afirma não receberem o suficiente. A prática deles é como um carro numa montanha, com o freio de mão acionado. Observando de fora, não percebemos quanta força é necessária para manter o carro parado.

Recentemente, conversei com um amigo que deixou a faculdade de medicina, há vinte anos, para se dedicar a investimentos. Sempre que nos encontramos, ele acha uma forma de me parabenizar pelo que considera minha vocação profissional. Ele frequentemente se pergunta se deveria ter insistido na medicina. Como muitos expatriados, meu amigo é um constante idealista do mundo que abandonou.

No nosso último encontro, ele falou sobre o tumulto em Wall Street. Como muitos banqueiros, ele estava preocupado com o futuro. "É uma boa época para ser médico", disse ele, conforme me lembro. "Eu adoraria ter um trabalho que não me obrigasse a pensar constantemente em dinheiro".

Nem me preocupei em desiludi-lo, mas a verdade é que a maioria dos médicos, hoje, seja na academia ou na prática particular, constantemente têm de pensar em dinheiro. No último mês de janeiro, os médicos Pamela Hartzband e Jerome Groopman, do Beth Israel Deaconess Medical Center, em Boston, escreveram na publicação "The New England Journal of Medicine" que "etiquetas de preço estão sendo aplicadas a todos os momentos do dia de um médico, criando uma consciência afiada sobre custos e reembolsos". Eles ainda acrescentaram: "Os estudantes de medicina de hoje estão sendo induzidos a uma cultura na qual sua profissão é vista cada vez mais em termos financeiros".

O crescente comercialismo, causado em parte pelo aumento das despesas e diminuição do reembolso, tem consequências óbvias para o público: custos galopantes e desgaste da relação médico-paciente. O que não está tão evidente são os efeitos prejudiciais para os próprios médicos. Somos treinados para pensar como pessoas que oferecem cuidado, não como homens de negócio. A constante intrusão do mercado de trabalho está gerando uma séria e profunda ansiedade na profissão.

Não faz muito tempo, um colega cardiologista, entrevistado para algumas vagas de emprego, veio ao meu consultório claramente decepcionado. "Eu fui ingênuo", ele disse. "Nunca pensei na medicina como um negócio. Achei que estávamos aqui para cuidar dos pacientes. Mas acho que a medicina é, sim, um negócio."

Perguntei o que ele achava de passar a atender pacientes particulares. "Estarei ocupado demais nos primeiros seis meses, vomitando - não terei muito tempo para pensar nisso", respondeu.

É claro, sempre houve uma motivação de lucro na medicina. Médicos que possuem seus próprios equipamentos de exame solicitam mais daquele tipo de análise. Para tomar um exemplo do meu trabalho adicional, um médico dono de um scanner tem sete vezes mais probabilidade de indicar um exame a um paciente, em relação aos outros médicos. Em regiões onde há mais médicos, existe um uso maior per capita dos serviços e exames dos médicos. A oferta muitas vezes dita a demanda.

No entanto, considerações financeiras nunca foram tão notáveis como hoje, provavelmente porque muitos hospitais e médicos, especialmente em grandes áreas metropolitanas, estão passando por apuros financeiros. Cada vez mais esses profissionais da saúde estão tentando vender sua prática, ou negociando com hospitais empregos, equipamentos ou ajuda financeira.

Em hospitais, a assistência sem reembolso está aumentando, à medida que pacientes - alvos da crise econômica - perdem seus seguros de saúde. Admissões e procedimentos eletivos - grandes produtores de receita - estão diminuindo. Os hospitais estão cortando custos administrativos, equipe e serviços.

"Cada vez mais, você verá pessoas da área médica fazendo MBA", disse-me um médico durante um seminário, numa previsão confirmada pela minha experiência. "Estamos numa crise total, e eu não sei a resposta".

Devo admitir que parte de mim quer ver os médicos dominando o lado comercial da nossa profissão. Quando ouço sobre executivos de empresas de saúde que recebem milhões de dólares em bônus, sinto nojo por esse lucro desavergonhado. Como membro leal da minha associação, quero ver médicos exercendo maior controle sobre nossa casa financeira.

Ainda assim, as consequências dessa tomada de consciência comerciais são problemáticas. Entre meus colegas, sinto um vazio emocional criado pela consideração implacável do dinheiro. A maioria dos médicos entrou para a medicina por estímulos intelectuais, ou pelo desejo de desenvolver relações com pacientes, não para maximizar suas receitas. Existe um sentimento palpável de angústia. Trabalhamos duro por tanto tempo, fizemos tantos sacrifícios, para quê? No fim, para muitos colegas, o trabalho se tornou somente isso - um trabalho.

Até começar a prática particular, nunca tive interesse no lado comercial da medicina. Às vezes, sinto falta de ser um residente ou acadêmico novamente, discutindo as complexidades de um caso, em vez de me preocupar com os resultados financeiros. "Você precisa aprender um pouco da visão da prática particular", aconselhou-me recentemente um colega médico. "Você não consegue sobreviver com a cabeça nas nuvens".

No entanto, algo fundamental se perde quando médicos começam a pensar na medicina como um negócio. Em seu ensaio, Hartzband e Groopman falam sobre a erosão do coleguismo, cooperação e espírito de equipe quando o ambiente do mercado de trabalho toma conta do hospital. "A balança se inclinou em direção a trocas de mercado, ao custo da dimensão comunitária e social da medicina".

O desenrolar dessa batalha determinará, em grande parte, como a medicina será realizada em vinte anos. Trata-se muito mais do que dólares e centavos. É uma batalha pela alma da medicina.


*Sandeep Jauhar é cardiologista em Long Island e autor do recente livro de memórias "Intern: A Doctor's Initiation"