Topo

"Nossas cicatrizes contam histórias", relata repórter que luta contra o câncer

Dana Jennings*<br>The New York Times

22/07/2009 18h30

Nossas cicatrizes contam histórias. Às vezes, elas são lendas cruéis de catástrofes ameaçadoras, mas geralmente são apenas notas de rodapé sobre os desvios corriqueiros (porém sangrentos) que ocorrem conosco nos caminhos da vida.

Quando analiso o variado desfile de cicatrizes do meu corpo, vejo-as como runas pessoais e um assunto para puxar conversa. Quando uso shorts, é raro a cicatriz cirúrgica que tenho no joelho direito não atrair um comentário.

Com sua semelhança com trilhos de um trem, minhas cicatrizes me lembram as jornadas impressionantes em que meu corpo já embarcou - muitas vezes para o hospital ou para a emergência.

As cicatrizes que mais me intrigam são aquelas da infância, cuja situação não consigo me lembrar. Por exemplo, uma cicatriz que tenho na sobrancelha direita, além de algumas marcas de catapora nos joelhos. Não é que fique chocado com elas. Para falar a verdade, me pergunto por que não existem mais delas.

Tive uma infância plena e ativa, movida a machucões e arranhões, joelhos esfolados e sangrentos, batidas e inchaços, cortes e golpes, unhas de gato e dentes de cachorro, vidros cortantes, aço desgastado, maçanetas e olho roxo. Isso levanta uma questão: como é que nós conseguimos sobreviver à infância?

Meu rosto teimoso aturou bons estragos ao longo dos anos. Analisando de perto, existe um delta de cicatrizes que me trazem lembranças da minha luta adolescente contra a acne. Aqueles dias frustrantes de tetraciclina e sabonetes esfoliantes deixaram meu rosto vermelho e esfolado, não limpo e radiante. A acne também destruiu minhas costas, marcando a pele de forma que ela ainda parece ressecada e irregular.

Depois, como adulto, criei crateras ainda maiores no rosto. Primeiro, dei de cara com um poste de ferro fundido enquanto corria atrás de uma bola no ar, num parque em Washington. Eu literalmente vi uma série de estrelinhas dançando diante dos meus olhos, quando desabei no chão. Mais tarde, enganchei meu barbeador num daqueles antigos buracos de acne e ganhei uma cicatriz instantânea.

Descendo da ponta do queixo para o dedinho do pé: também consegui marcar meus pés. No colégio e na faculdade, eu trabalhei na Kingston Steel Drum, uma fábrica na cidade de New Hampshire que lavava tambores metálicos de 200 litros com ácido e água escaldante. Mais tarde, a fábrica acabou sendo fechada pelo governo federal e se tornou um perigoso local de despejo, mas não antes que uma torneira tivesse um problema e encharcasse meus pés com ácido.

Há também as cicatrizes poderosas, os chicotes costurados e as serpentes, que fazem minhas outras marcas parecerem covinhas numa bola de golfe.

Existe ainda aquela cicatriz enorme no meu joelho direito. Essa foi quando eu tinha 12 anos e tive um tumor benigno removido. E aquelas cicatrizes no meu abdômen de quando meu cólon (devorado pela colite ulcerosa) foi removido, em 1984, e da minha prostatectomia radical aberta, no verão passado, para remoção do meu câncer de próstata. Se algum dia eu tiver uma banda de heavy metal, acho que vou chamá-la de Prostatectomia Radical Aberta.

No entanto, por todas as histórias de desgraça que elas sugerem, as cicatrizes são também placas de trânsito de otimismo. Se seu corpo é corajoso o suficiente para se costurar de volta depois de uma dolorosa lição física, produzindo uma cicatriz, isso significa que você ainda está vivo, que você está no caminho da cura.

Talvez as cicatrizes fossem tatuagens primárias, marcas de distinção capazes de mostrar que você tinha sido tentado e sobrevivido ao teste. Assim como tatuagens, elas também vão perdendo a cor, apesar de que a da minha última cirurgia ainda tem um tom roxo profundo e cruel.

Também há algo de talismânico sobre as cicatrizes. Passo a mão sobre elas da mesma forma que outras pessoas se agarram num pé de coelho ou lustram uma moedinha da sorte. As cicatrizes são suaves e secas, assim como devem ser as escamas de uma cobra.

Acho que minhas cicatrizes abdominais são as mais profundas. Elas me lembram vividamente que cirurgiões habilidosos me abriram com seus bisturis, removeram o que tinha de ser removido, me costuraram novamente, e salvaram minha vida. É como se eles tivessem deixado suas assinaturas na minha pele imperfeita.

As cicatrizes também me lembram que, nessa cultura superficial, nossa vaidade às vezes precisa ser puncionada e desinchada - isso não é tão ruim assim. Parafraseando o Eclesiastes: melhor ser um cachorro vivo e cheio de cicatrizes do que ser um leão morto.

Não é que eu tenha orgulho das minhas marcas - elas são o que são, nasceram por acidente e necessidade -, mas também não tenho vergonha delas. Mais que qualquer outra coisa, eu saboreio as histórias que elas contam. Sempre acreditei no poder das histórias, e certamente acredito no poder das cicatrizes.

*Dana Jennings é repórter do The New York Times. Ele escreve semanalmente sobre sua luta contra o câncer de próstata no nytimes.com/well.