Topo

A estreia de um vírus na seringa de um médico

Kent Sepkowitz*<br>The New York Times

02/09/2009 14h45

Nesta semana faz dez anos que Nova York se viu no centro de um grande drama de saúde pública: no bairro do Queens, uma misteriosa doença estava atacando homens mais velhos que gostavam de jardinagem.

A agitação minuto a minuto lembrou aquela do recente pandemônio causado pela gripe suína, mas com uma importante diferença: naqueles primeiros dias do fim do verão de 1999, a causa da epidemia era desconhecida. Foi somente em 24 de setembro, após a morte de três pessoas, que o culpado foi identificado. Era o vírus do Oeste do Nilo, e os investigadores declararam com seriedade assustadora que o mosquito portador nunca havia sido visto nos Estados Unidos.

Não era bem assim. Os primeiros casos da doença do Oeste do Nilo na América, na verdade, foram vistos na década de 1950, no Upper East Side, em Manhattan. Porém, esses casos ocorreram entre pessoas com câncer terminal, e os transmissores não foram mosquitos, mas a seringa de um pesquisador, que trabalhava onde hoje funciona o Centro de Câncer Memorial Sloan-Kettering.

Sessenta anos atrás, radiação e quimioterapia para câncer estavam em sua infância; caso o cirurgião não pudesse cortar fora o tumor, as coisas estavam praticamente perdidas. Então o pesquisador, Chester M. Southam, estudava o vírus atrás de seu potencial para matar cânceres. Estudos mostraram que um elemento patogênico, chamado vírus russo de encefalite de primavera e verão, podia erradicar tumores em ratos. Como esse vírus era considerado perigoso demais para humanos, Southam buscava por algo mais brando, ficando satisfeito com o recém-descoberto vírus do Oeste do Nilo.

O trabalho foi conduzido em dois quartos conjugados, separados do restante do hospital por uma antiga porta de tela. O Dr. Donald Armstrong, médico emérito responsável no Memorial Sloan-Kettering, que na época ainda estava em treinamento, disse que as telas foram colocadas para minimizar a possibilidade de um mosquito transmitir o vírus a outros pacientes ou membros da equipe. Southam injetou o vírus do oeste do Nilo em mais de 100 pessoas com câncer avançado e poucas opções de tratamento, e, em seguida, relatou suas descobertas em revistas. O trabalho gerou uma agitação substancial. "Cânceres profundos encolhem temporariamente graças a raro vírus nervoso da África", publicou o "New York Times", em 15 de abril de 1952.

"Vírus nervoso", seguramente: Southam havia escolhido o Oeste do Nilo por achar que seria inofensivo. Em casos ocorridos naturalmente na África, ele havia causado apenas uma leve febre. Porém, em Nova York, as coisas aconteceram de maneira bem diferente. Na metrópole americana, 11% das pessoas ficaram doentes, e alguns casos foram bastante graves, com sintomas do que hoje consideramos a encefalite clássica do Oeste do Nilo: febre, fraqueza, confusão e até mesmo convulsões. O vírus foi isolado do fluido cerebrospinal de um paciente, enquanto em outros, foi cultivado a partir do sangue mais de três semanas após a inoculação.

Em um tipo de câncer, o linfoma, os tumores realmente encolheram em três dos oito pacientes injetados, em comparação com apenas algumas reações nos outros 100 portadores de outros tipos de câncer. Entretanto, cinco dos pacientes com o mesmo linfoma desenvolveram uma grave doença do Oeste do Nilo, incluindo a encefalite - uma proporção muito mais alta do que em qualquer outro grupo.

Assim, Southam foi adiante. Intrigado pela habilidade do corpo em destruir a infecção, ele pensou se isso poderia ser treinado para controlar tumores. Pelo restante de sua carreira, ele trabalhou no inovador campo da terapia imunológica, atualmente uma das áreas mais instigantes do tratamento de câncer. Seu trabalho com o Oeste do Nilo, enquanto isso, gerava seu próprio campo.

As abordagens atuais são mais sofisticadas do que as dos velhos tempos da porta de tela. Por exemplo, alguns investigadores capturam um vírus, então o enviam para entregar seu pacote tóxico à célula cancerosa. Em outras abordagens, um vírus é injetado para provocar uma reação imunológica generalizada. Em outras, ainda, o vírus fez o que Southam havia previsto: mata diretamente o tumor.

Porém, no lugar de ser reverenciado como o pai da terapia viral, ou como patriarca no campo da imunoterapia, Southam se tornou famoso por algo totalmente diferente. Seu entusiasmo por compreender como o sistema imunológico pode ser estimulado para controlar o câncer quase lhe custou sua carreira. Para estudar a reação imunológica ao câncer, ele injetou células vivas de tumores em pessoas sem doenças; ele selecionou 53 prisioneiros na Penitenciária Estadual de Ohio e, anos depois, 22 pacientes idosos e moribundos no Brooklyn, em Nova York.

Um ensaio de 2004, escrito pelo Dr. Barron H. Lerner, no "New England Journal of Medicine", recontou a "enorme controvérsia" que acompanhou o episódio do Brooklyn. Num caso trazido pelo promotor-geral do Estado ante o Quadro de Regentes da Universidade Estadual de Nova York, em 1964, considerava-se que Southam havia cometido "fraude ou enganação", além de conduta não-profissional (apesar disso, ou graças a isso, ele foi rapidamente eleito presidente da Associação Americana de Pesquisa do Câncer).

O caso se tornou um marco no debate internacional sobre a proteção adequada de voluntários humanos. Não que a ideia fosse nova para ele: em um artigo sobre Oeste do Nilo, ele apontava que "todos os pacientes eram voluntários e foram informados da natureza experimental, e infecciosa, da inoculação do vírus".

Southam morreu em 2002, aos 82 anos. No fim, sua maior contribuição à medicina não foi o trabalho pioneiro sobre terapias virais ou imunológicas de câncer. Ao invés disso, ele ocupa a indesejável posição de haver atraído a atenção pública sobre os problemas éticos relacionados à pesquisa clínica - e, como tal, foi essencial na criação de nosso atual sistema, onde as maiores prioridades levam não à aquisição de conhecimento médico, mas à segurança dos voluntários humanos.

*Dr. Kent Sepkowitz é vice-presidente de medicina no Centro de Câncer Memorial Sloan-Kettering.
Tradução: Pedro Kuyumjian