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Cientistas criam espécie de Google Earth para buscar informações em cérebro

Benedict Carey

New York Times News Service <br>Em San Diego

03/01/2010 07h00

Em uma cinzenta tarde de sábado, no início de dezembro, cientistas se reuniam ao redor do que parecia ser uma caixa de 8 litros de iogurte congelado, sua tampa aberta cheia de vapores de gelo seco.

À medida que o recipiente quadrado, afixado sobre uma plataforma móvel, avançava lentamente na direção de uma lâmina de aço montada em nível com sua superfície, o grupo prendeu sua respiração coletiva. A lâmina descascou a camada de cima, enrolando-a em câmera lenta como uma fatia de presunto cru.

"Quase lá", alguém disse.

Outra fatia foi cortada, e outra, e outra. Então, lá estava: um ponto rosa no começo, agora uma mancha, aumentando em cada pedaço como vinho tinto derramado em um carpete creme – um cérebro humano. Não um cérebro qualquer, mas aquele que pertenceu a Henry Molaison, conhecido mundialmente como H.M., um amnésico que colaborou em centenas de estudos da memória e morreu no ano passado, aos 82 anos (Molaison concordou em doar seu cérebro anos atrás, em conversa com um parente.)

"Dá pra entender por que todos estão tão nervosos", disse Jacopo Annese, professor assistente de radiologia na Universidade da Califórnia de San Diego (UCSD), enquanto retirava delicadamente uma fatia com um pincel de arte e a colocava em uma bandeja etiquetada com solução salina. "Me sinto como se o mundo estivesse espiando por cima de meu ombro".

E realmente estava: milhares se conectaram para observar o procedimento ao vivo, via webcast. A dissecção marcou o ápice da extraordinária vida de H.M., e de mais de um ano de preparativos apenas para este momento, orquestrado por Suzanne Corkin, pesquisadora da memória do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) que havia trabalhado com Molaison nas últimas cinco décadas de sua vida.

Mas isso foi também o início de algo muito maior, como esperam Annese e muitos outros cientistas. "O advento das imagens cerebrais abriu tantas portas", disse Sandra Witelson, neuroscientista da Escola de Medicina Michael G. DeGroote, da Universidade McMaster, no Canadá, que administra um banco de 125 cérebros, incluindo o de Albert Einstein. "Mas acho que as pessoas, em toda a empolgação, esqueceram a real importância do estudo anatômico do cérebro, e este é o tipo de projeto que poderia realmente reiniciar o interesse nessa área".

O projeto da Universidade da Califórnia – chamado de Brain Observatory, montado para aceitar muitos cérebros doados – é um esforço para unir passado e futuro. A dissecção do cérebro é uma arte que remete a séculos atrás e ajudou cientistas a compreender onde são agrupadas funções como processamento de linguagem e visão, para comparar concentrações de matéria cinzenta e branca em diferentes populações, e para entender os danos causados por doenças como Alzheimer e derrames.

Mesmo assim, não existe um padrão único para abrir um cérebro. Alguns pesquisadores cortam do topo para baixo, em paralelo ao plano que passa pelo nariz e orelhas; outros cortam o órgão em diversos blocos, e prosseguem para áreas específicas de interesse. Nenhum método é perfeito, e qualquer corte pode dificultar, quando não impossibilitar, a reconstrução de circuitos que conectam células em áreas distintas do cérebro e criam, de alguma forma, uma mente que pensa e sente.

Para criar uma imagem o mais completa possível, Annese corta fatias muito finas – 70 mícrons cada, finas como papel – de todo o cérebro, praticamente paralelas ao plano da testa, movendo-se da frente para trás. Talvez o pioneiro mais conhecido desse tipo de corte do cérebro inteiro seja o Dr. Paul Ivan Yakovlev, que construiu uma coleção de fatias de centenas de cérebros, hoje mantidos numa instalação em Washington.
Porém, Annese tem algo que Yakovlev não tinha: uma tecnologia avançada de computação que rastreia e reproduz digitalmente cada fatia. Um cérebro inteiro produz cerca de 2.500 fatias, e a quantidade de informação em cada uma, assim que são agregados detalhes microscópicos, preencherão aproximadamente um terabyte de armazenamento em computador. Computadores da Universidade da Califórnia agora estão unindo todos esses pedaços para o cérebro de Molaison, para criar o que Annese chama de "um mecanismo de busca como o Google Earth", o primeiro atlas cerebral inteiramente reconstruído disponível a qualquer um que quiser acessá-lo.

"Teremos o tipo de resolução, até o nível de células únicas, que antes não tínhamos amplamente disponível", disse Donna Simmons, acadêmica visitante no Centro de Arquitetura Cerebral da Universidade do Sul da Califórnia. O fatiamento fino do cérebro "permitirá oportunidades muito melhores de estudar a conexão entre células, os próprios circuitos, sobre os quais ainda temos tanto a aprender".

Especialistas estimam que existam cerca de 50 bancos de cérebros no mundo todo, muitos com órgãos de pacientes médicos com problemas neurológicos ou psiquiátricos, e alguns com estoque doado por pessoas sem doenças. "Idealmente, qualquer um com a tecnologia poderia fazer o mesmo com seus próprios espécimes", disse Corkin.

Os desafios técnicos, entretanto, não são simples. Para preparar um cérebro para dissecção, Annese primeiro o congela numa solução de metanal e sacarose, até atingir 40 graus Celsius negativos. O congelamento, no caso de H.M., foi feito em quatro horas, alguns graus de cada vez: o cérebro, como a maioria das coisas, fica mais frágil quando congelado. Ele pode quebrar.

Molaison perdeu sua habilidade de formar novas memórias após uma operação que removeu um pedaço de tecido de dentro de cada hemisfério em seu cérebro, tornando-o mais delicado que a maioria.

"Uma rachadura teria sido um desastre", disse Annese. Isso não aconteceu.

Com a ajuda de David Malmberg, engenheiro mecânico da UCSD que desenvolveu equipamentos para uso na Antártida, o laboratório criou um colar metálico para manter o cérebro suspenso exatamente na temperatura correta. Alguns graus a menos e a lâmina iria trepidar, ao invés de cortar de forma lisa; alguns graus a mais, e a lâmina quer mergulhar no tecido. Malmberg manteve a temperatura estável bombeando etanol continuamente pelos colares, a 40 graus negativos. Ele suspendeu as mangueiras usando correias de pranchas de surf obtidas alguns dias antes da dissecção.

Depois de fatiar e armazenar, um processo que levou 53 horas, o laboratório de Annese logo começará o processo – igualmente detalhista – de montar cada fatia numa lâmina de vidro. O laboratório vai manchar as lâminas a intervalos regulares, para ilustrar as características do órgão reconstruído. E eles pretendem oferecer fatias para estudo. Pesquisadores de fora podem solicitar amostras e usar seus próprios métodos para manchar e analisar a composição de áreas específicas de alto interesse.

"Para o trabalho que faço, analisar quais genes são preferencialmente expressos em diferentes áreas do cérebro, esse será um recurso gigantesco", afirmou Simmons.

Se tudo correr conforme o planejado, e se o Brain Observatory catalogar uma coleção variada de cérebros normais e anormais – e se, crucialmente, outros laboratórios aplicarem técnicas similares em suas próprias coleções –, os cientistas do cérebro terão dados para mantê-los ocupados por gerações. Em seu próprio trabalho, Witelson descobriu interessantes diferenças anatômicas entre cérebros masculinos e femininos; e, no cérebro de Einstein, um lóbulo parietal, onde é centrada a percepção de espaço, que era 15% maior que a média.

"Com mais dados desse tipo", disse Witelson, "seremos capazes de analisar todos os tipos de comparações, por exemplo, comparando o cérebro de pessoas com grandes habilidades matemáticas ao de quem não tem essa facilidade".

"Você pode pegar alguém como Wayne Gretzky, por exemplo", continuou ela, "que sabia não só onde o disco de hóquei estava mas também onde ele estaria – aparentemente uma visão de uma quarta dimensão, tempo – e ver se ele tinha características anatômicas especiais" (por enquanto, Gretzky ainda está usando seu cérebro.)

Então Molaison, que impulsionou o estudo moderno da memória ao cooperar em estudos na metade do século XX, pode ajudar a inaugurar ma nova era no século XXI. Ou melhor, assim que Annese e sua equipe de laboratório terminarem de classificar as fatias que coletaram.

"É um trabalho muito empolgante de se falar a respeito", disse Annese. "Mas vê-lo sendo feito é como observar a grama crescendo".