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Séries médicas exibem mais fantasia do que realidade da profissão

Cristina Almeida

Especial para o UOL Ciência e Saúde

16/04/2010 07h00

Retirar vermes por meio de uma punção abdominal. Indicar radioterapia sem exames prévios. Aplicar choque (desfibrilação) em situações onde essa conduta é contraindicada. Oferecer dinheiro aos pacientes na sala de espera para que eles desistam das consultas. As práticas médicas das séries da TV prendem a atenção e divertem, mas são consideradas absurdas pelos profissionais da saúde, mesmo entre aqueles que se declaram fãs dos seriados.

Estudos realizados pela Kaiser Family Foundation (EUA) e pela Universidade de Dalhousie (Canadá) avaliaram o impacto desses filmes na educação sobre assuntos relacionados a saúde. A primeira pesquisa identificou o potencial para a difusão de informações corretas sobre doenças, seus sintomas e tratamentos. A ação quadruplica a absorção dos conceitos veiculados.

O segundo estudo, dirigido por Andrew Moeller, estudante de medicina interessado nos primeiros socorros aplicados a pacientes com epilepsia, observou os procedimentos retratados em "Grey’s Anatomy", "House", "Private Practice" e "Plantão Médico (ER)". Moeller concluiu que, se alguém tomar como base as cenas desses filmes, “provavelmente causará algum mal ao doente, pois somente 29% deles apresentam fielmente as devidas providências médicas”.

Na opinião do médico Hélio Penna Guimarães, especialista em Urgências Clínicas e UTI Clínica Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do Centro de Ensino, Treinamento e Simulação do Hospital do Coração, a produção dessas séries demonstra descuido e falta de consideração com o telespectador. “Profissionais com um mínimo de conhecimento podem identificar erros durante os programas, o que faz com que eles percam sua credibilidade”, diz.

Penna afirma que há anos os especialistas analisam a forma como os filmes podem influenciar as pessoas, e cita como exemplo estudos sobre a ressuscitação cardiopulmonar. “Em geral, por terem visto uma cena parecida com resultados positivos, elas nutrem altas expectativas de sucesso. Entretanto, na vida real, esse resultado dependerá de vários fatores como idade, condições pessoais do paciente etc”.

“Por causa das séries, não é raro que os pacientes e familiares perguntem sobre diagnósticos e procedimentos que viram na TV, e que eles acreditam piamente serem reais”, complementa o especialista.

Opiniões

Fã dos seriados desde a época em que cursava medicina, a otorrinolaringologista Mayra Centelhas, pós-graduanda da Faculdade de Medicina do ABC, declara que nenhuma das séries atuais representa fielmente a realidade. Para ela, "House" encabeça a lista das discrepâncias. “Nessa série, as cirurgias e tratamentos são feitos sem nenhum embasamento. A exceção é 'ER', que sempre mostrou casos muito próximos de nossa rotina diária e, além disso, tinha o maior rigor técnico”.

Nilva Moraes, chefe de setor no departamento de oftalmologia da Unifesp, conta que há 20 anos assiste a todas as séries e também elege "ER" como a que melhor retrata "os casos médicos, o ambiente de urgência e pronto-socorro, bem como o raciocínio rápido e a conduta imediata que se espera que os médicos tenham durante os trabalhos”.

De acordo com Penna, a preferência dos médicos por "ER" não ocorre à toa: “A produção tinha como um de seus integrantes Michael Crichton, médico formado pela Universidade de Harvard, que também foi emergencista”.

A enfermeira Ana Cristina de Sá, professora do Centro Universitário São Camilo, é outra fã: “Me identifiquei muitas vezes com a enfermeira-chefe desse seriado, especialmente em relação às questões éticas e emocionais que giram em torno da profissão de um enfermeiro da emergência”.

Para ela, "ER" era educativa para a população e, para os profissionais, um divertimento. Já "House" produz o efeito contrário: "Para mim, ele é um egocêntrico, péssimo clínico, torturador de pessoas, sem falar da ética questionável e dos maus exemplos”, completa.

Casos raros

Já o geneticista Salmo Raskin revela identificar-se com "House", mas não por seus defeitos e manias, é bom deixar bem claro. Para ambos, o desafio diário é solucionar diagnósticos difíceis e investigar doenças raras.

O ponto de vista de Raskin é que o personagem, na verdade, é uma crítica implícita a um dos maiores problemas existentes em sua profissão: a relação médico-paciente, definida como falta de humanismo e sensibilidade da equipe médica em relação aos doentes e seus familiares. “Na medicina norte-americana isso é ainda mais evidente do que aqui no Brasil. O comportamento frio do Dr. House não só ironiza como critica esse aspecto. Essa é a razão porque considero a série como a que melhor retrata a realidade atual.”

Sexo no plantão

Segundo os profissionais de saúde consultados pelo UOL Ciência e Saúde, os seriados não pecam só pela falta de rigor técnico. Há um outro aspecto negativo cogitado pela maioria deles: as relações pessoais entre os membros de equipes médicas, tidas como fantasiosas. “Os hospitais parecem mais bares e boates onde as pessoas têm encontros amorosos”, comenta Centelhas.

A enfermeira concorda: “A promiscuidade que as séries apresentam entre os profissionais não reflete a verdade e apenas reforça o imaginário leigo quanto a esse comportamento”.

Já Penna entende que o destaque aos relacionamentos amorosos é mais uma estratégia de dramaturgia: " No final, é isso que atrai o público em geral”, diz Penna.

Questões éticas

Entre tantas críticas, um aspecto positivo apontado pela enfermeira Sá é o fato de que os seriados podem servir de inspiração para mudanças a favor dos pacientes e sua família. Nos filmes, os familiares estão presentes em todos os procedimentos, até nas reanimações cardiorrespiratórias. A especialista revela que esse é um direito reconhecido em quase todo o mundo, mas não no Brasil.

“Poucas pessoas sabem que elas têm o direito de ter acesso ao seu prontuário médico, e que ele é seu e não do hospital". Além disso, ela relata que as séries sempre mostram o direito de decidir sobre a própria vida, tanto que já ouviu pacientes dizerem: "na série da TV o paciente pode decidir, por que aqui eu não posso?”

Em última instância, os seriados podem ser o ponto de partida para a discussão sobre questões relativas a ética médica, ainda que para isso seja preciso atrair o público com doses generosas de ficção.