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Escavações no norte da Síria revelam informações sobre a Mesopotâmia

Por John Noble Wilford

The New York Times

27/04/2010 17h29

Arqueólogos iniciaram escavações, no norte da Síria, que prometem ampliar e aprofundar a compreensão da cultura pré-histórica na Mesopotâmia que preparou o palco para o surgimento das primeiras cidades e Estados do mundo, além da invenção da escrita.

Em duas estações de pesquisas e escavações preliminares no local conhecido como Tell Zeidan, pesquisadores norte-americanos e sírios descobriram uma animadora amostragem de artefatos do que foi uma robusta povoação pré-urbana na parte superior do rio Eufrates. Povos ocuparam o local por dois milênios, até 4.000 a.C. – um período pouco conhecido, mas decisivo, da evolução cultural humana.

Estudiosos da antiguidade dizem que Zeidan deve revelar percepções da vida numa época chamada de período Ubaid, de 5.500 a 4.000 a.C. Naqueles séculos pouco estudados, disseminou-se a agricultura irrigada, as trocas de longa distância cresceram em influência social e economicamente, poderosos líderes políticos vieram à frente e as comunidades gradualmente se dividiram em classes sociais – de elites ricas e plebeus mais pobres.

Gil Stein, diretor do Instituto Oriental da Universidade de Chicago, um dos líderes das escavações em Zeidan, afirmou que a locação nortista do sítio prometia enriquecer o conhecimento sobre a influência da cultura Ubaid muito além de onde os primeiros centros urbanos eventualmente floresceram na parte inferior dos vales do Tigre e Eufrates. As novas explorações, segundo ele, devem ser as mais abrangentes até hoje numa grande povoação Ubaid, possivelmente rendendo descobertas durante décadas.

“Imagino que trabalharei aqui até me aposentar”, disse Stein, de 54 anos.

Existem diversos motivos para agitação a respeito das escavações Zeidan. Guerrilhas e as instáveis condições resultantes mantiveram arqueólogos fora do Iraque e seus principais sítios de antiguidade mesopotâmica. Por isso, eles dobraram as pesquisas nos vales superiores dos rios, através da fronteira na Síria e sul da Turquia. E Zeidan é facilmente acessível. Por nunca ter sido substituída por culturas subsequentes, a região é livre de quaisquer camadas de ruínas para frustrar escavadores.

Acima de tudo, uma forte ambição dos arqueólogos sempre é cavar abaixo do passado conhecido, buscando mais do que simples vislumbres do pouco conhecido.

Durante quase dois séculos, a glória ficou com expedições que descobriam as casas e os templos, depósitos e oficinas de centros urbanos primários como Uruk, lar do lendário Gilgamesh, e os esplendores subsequentes de Ur e Nineveh. O desafio era decifrar as placas de argila de uma civilização alfabetizada com início no que é conhecido como o período Uruk, de 4.000 a 3.200 a.C.

Uruk permanece ofuscado por traços de culturas Ubaid, conhecidas como as primeiras sociedades complexas da região. Apenas um punhado de ruínas – em Ubaid, Eridu e Oueili ao sul da Mesopotâmia, e Tepe Gawra ao norte, perto de Mosul, Iraque – haviam produzido, no máximo, uma imagem rascunhada dessas culturas mais antigas. Alguns sítios Ubaid no norte da Síria eram ou pequenos demais para serem reveladores, ou praticamente inacessíveis sob outras ruínas.

Uma década atrás, Richard L. Zettler, arquólogo da Universidade da Pensilvânia com extensa experiência na Síria, afirmou, “Nosso verdadeiro foco agora não deve estar sobre o período Uruk, mas no Ubaid”.

Na semana passada, Zettler, que não está associado à equipe de Chicago, mas visitou o sítio, disse que Zeidan preserva artefatos ao longo de uma longa sequência de cultura Ubaid, numa junção de rotas principais de comércio. “Devemos enxergar a transição como a disseminação Ubaid, do sul para regiões agricultoras no norte”, afirmou ele.

Guillermo Algaze, antropólogo da Universidade da Califórnia, em San Diego, e uma autoridade em urbanismo antigo no Oriente Médio – não envolvido na pesquisa –, disse recentemente que Zeidan “tem o potencial para revolucionar as interpretações atuais de como surgiu a civilização do Oriente Próximo”.

Tell Zeidan fica a uma viagem de duas horas de carro de Aleppo, e três milhas da moderna cidade de Raqq. Muhammad Sarhan, curador do Museu Raqqa, é co-diretor, com Stein, das escavações – inicialmente conhecidas como Projeto Conjunto Americano-Sírio de Pesquisa Arqueológica em Tell Zeidan.

O local consiste de três grandes colinas na margem leste do Rio Balikh, logo ao norte de sua confluência com o Eufrates. Os montes, com o maior tendo 50 pés de altura, confinam ruínas de uma cidade baixa. Escombros enterrados e muita cerâmica na superfície se espalham por uma área de 31 acres, o que torna esta provavelmente a maior comunidade Ubaid conhecida.

Pareceria que os montes ficaram muito tempo na paisagem semi-árida como um convite aberto para que arqueólogos parassem e cavassem. Alguns pararam. O arqueólogo americano William F. Albright identificou o local em 1926. O arqueólogo britânico Sir Max Mallowan, marido da escritora de mistério Agatha Christie, intrigou-se e conduziu uma breve pesquisa em 1983, descobrindo que o sítio parecia datar do período Ubaid.

Um grupo alemão pediu autorização aos Sírios para cavar, mas essa lhes foi negada.

Finalmente, após visitas iniciais a Zeidan, Stein disse que o governo sírio “me motivou a enviar uma solicitação” para cavar. Por que a mudança?

“Fiquei incrivelmente animado, mas pude apenas especular sobre quais seriam seus motivos”, disse Stein numa recente entrevista, referindo-se à decisão síria. “Talvez eles estivessem esperando pela chegada da equipe certa. Nosso instituto havia trabalhado na Síria por algo como 80 anos, e estávamos interessados num compromisso de longo prazo. Nós também apontamos que o sítio estava em risco pelo desenvolvimento de agricultura ao longo de suas bordas. Partes do local já haviam sido terraplanadas em campos e um canal”.

Nos verões de 2008 e 2009, Stein dirigiu o mapeamento das ruínas Zeidan e a escavação de valas exploratórias. Ele afirmou que as descobertas iniciais confirmavam que o sítio era uma “comunidade proto-urbana” no período Ubaid, muito provavelmente o local de um importante templo.

Descrições e interpretações das descobertas até agora foram publicadas no último relatório anual do Instituto Oriental, seguido por uma declaração nesta semana pela Universidade de Chicago. A equipe internacional de escavação, financiada pela Fundação Nacional de Ciência nos Estados Unidos, deve retomar os trabalhos de campo em julho.

Quatro fases distintas de ocupação foram identificadas em Zeidan. Uma cultura mais simples, conhecida como Halaf, foi encontrada nos sedimentos de baixo, materiais Ubaid bem preservados estão no meio e duas camadas da Idade do Cobre estão no topo. Pelas evidências até agora, as transições entre períodos foram aparentemente tranquilas.

Arqueólogos desencavaram destroços de pisos de casas com lareiras, fragmentos de paredes de tij0los de barro, cerâmica Ubaid pintada e seções de muros maiores, possivelmente partes de fortificações ou arquiteturas públicas monumentais. Os estilos de cerâmica e testes de radiocarbono indicam que o muro seja de aproximadamente 5.000 a.C.

Uma das descobertas mais significativas foi um carimbo de pedra com o desenho de um cervo, provavelmente usado para carimbar uma marca em bens e identificar propriedade numa época anterior à escrita. Com cerca de duas por duas polegadas e meia, o carimbo é excepcionalmente grande e entalhado numa pedra vermelha não nativa da região. na verdade, segundo arqueólogos, ele é similar em desenho a um carimbo encontrado 185 milhas ao leste, em Tepe Gawra, perto de Mosul.

Para arqueólogos, um carimbo não é apenas um carimbo. Zettler disse que ele significa que “alguém tem a autoridade de restringir acesso a coisas – para fechar e abrir jarros, sacolas, portas – e assim, quando você possui esse carimbo, é preciso ter havido estratificação social”.

A existência de carimbos elaborados com motivos quase idênticos em sítios tão distantes, segundo Stein, “sugere que nesse período, elites de alta graduação assumiam posições de liderança ao longo de uma região bastante ampla, e essas elites dispersas compartilhavam um conjunto comum de símbolos – e até mesmo uma ideologia comum de status social superior”.

Outros artefatos atestam a mudança da cultura, de uma vida auto-suficiente em vilas a produções especializadas de trabalhos manuais, dependentes de comércio e capazes de adquirir bens de luxo, relatam os arqueólogos. Deduz-se que tal transição tenha exigido alguma estrutura administrativa e criado uma classe rica. A expedição buscará as ruínas de templos e grandes edifícios públicos como confirmação dessas alterações políticas e sociais.

No que parece ser a área industrial do sítio, arqueólogos desenterraram oito grandes fornos para queimar cerâmica, uma das mercadorias Ubaid mais encontradas em amplas áreas de troca. Eles descobriram lâminas feitas de vidro vulcânico de alta qualidade. Uma abundância de lascas obsidianas mostrou que as lâminas foram produzidas no local, e a cor e composição química do material indicaram que ele veio de minas da atual Turquia.

“Encontramos lâminas de foices em sílex em todo lugar”, disse Stein, apontando que elas tinham um brilho lustroso “onde haviam sido polidas pela sílica nos caules de trigo que eram usadas para colher”.

Zeidan tinha também uma indústria de fundição para fabricar ferramentas de cobre, a tecnologia mais avançada do quinto milênio a.C. O povo provavelmente ia até a 250 milhas de distância para obter o minério de cobre mais próximo, em fontes próximas à atual Diyarbakir, na Turquia. Levar o cobre para casa não era uma tarefa fácil. Numa época anterior à roda ou burros domesticados, as pessoas tinham de carregar a pesada carga nas suas costas.

Um sítio como Tell Zeidan, segundo Zettler, está “nos dizendo que as cidades Uruk não apareceram do nada, elas evoluíram a partir das fundações criadas no período Ubaid”.

Até recentemente, afirmou Algaze, “acidentes de captação de dados” haviam levado acadêmicos a pensar que a origem das cidades e estados na Mesopotâmia foi “uma ocorrência razoavelmente abrupta no quarto milênio, concentrada no que é o sul do Iraque”.

As cidades do sul podem ter sido maiores e mais duradouras, disse ele, mas o aumento da exploração na periferia mesopotâmica, especialmente a disseminação das trocas e tecnologias entre culturas Ubaid em interação, sugere que “a semente da civilização urbana” foi plantada bem antes de 4.000 a.C.

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