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Descendentes da família de Mendel brigam por seu manuscrito sobre leis da hereditariedade

Por Nicholas Wade

The New York Times

10/06/2010 08h00

Um manuscrito há tempos perdido, um dos mais importantes na história da biologia moderna, reapareceu como parte de uma disputa por sua posse.Trata-se da descrição, por Gregor Mendel, dos experimentos com produção de ervilhas dos quais ele deduziu as leis da hereditariedade – e armou a base da genética moderna.

Mendel leu seu artigo em 1865, em dois encontros da Sociedade de História Natural em Brunn. Ele era, na ocasião, um monge agostiniano, posteriormente um abade, na Abadia de St. Thomas em Brunn, atualmente Brno, na República Tcheca.

O artigo foi publicado no ano seguinte no jornal da Sociedade de História Natural de Brunn, mas a obra de Mendel foi basicamente ignorada ao longo de sua vida. Foi somente em 1900, 16 anos após sua morte, que outros pesquisadores redescobriram as leis de Mendel e perceberam que ele as havia antecipado.

O manuscrito original do incrível trabalho de Mendel, chamado “Experimentos de Hibridização de Plantas”, sofreu uma obscuridade mais longa, apesar de seu significado histórico. “De uma perspectiva conceitual, este é o documento científico mais incrível na história do século XIX”, afirmou Robert C. Olby, historiador da ciência da Universidade de Pittsburgh, em entrevista. “Para a criação e interpretação de um experimento, não há nada que se aproxime. Isso não tem preço”.

O manuscrito sem preço foi posto de lado em 1911 pela sociedade de História Natural de Brunn e, felizmente, resgatado por um professor colegial local – que o recuperou de um cesto de lixo na biblioteca da sociedade. Em seguida, ele foi devolvido aos arquivos da sociedade. Durante a ocupação alemã da Tchecoslováquia, o manuscrito passou algum tempo na maleta de um professor alemão de botânica que controlava as instalações da Sociedade de História Natural. Então, em 1945, quando as forças russas substituíram os ocupantes alemães, o manuscrito de Mendel desapareceu por quase meio século.

As primeiras pessoas que ouviram sobre ele novamente foram membros da família de Mendel, os descendentes de suas duas irmãs, Veronica e Theresia. Como muitos outros oradores alemães da Tchecoslováquia, a família se mudou para a Alemanha Ocidental após a Segunda Guerra Mundial.

Em algum momento após 1988, Erich Richter, um descendente de Mendel que é também um monge agostiniano conhecido como Padre Clemens, disse a outros membros da família que estava com o manuscrito de Mendel, que tinha sido enviado a ele por um monge em Praga. Padre Clemens queria colá-lo legalmente em posse da família. Assim, em 2001, oito membros da família de Mendel – incluindo o Padre Clemens – formaram uma empresa para preservar o documento como um tesouro cultural alemão, e o manuscrito foi colocado no cofre de um banco em Darmstadt, na Alemanha.

A Dra. Maria Schmidt, tataraneta de Veronica Mendel e membro da empresa familiar, disse que o Padre Clemens recentemente tinha mudado de ideia a respeito da propriedade do manuscrito – depois que o chefe dos agostinianos no sul da Alemanha e Áustria, o Padre Dominic de Viena, exigiu que o manuscrito fosse entregue à ordem.

“Houve uma pressão enorme sobre Clemens”, disse Schmidt. “Eles disseram que iriam expulsá-lo do mosteiro. O primo de meu pai tem 77 anos e não tem propriedades. Ele teria perdido seu carro e apartamento”.

Padre Dominic disse, numa entrevista, que o manuscrito havia sido entregue ao padre Clemens para que ele “cuidasse dele como um agostiniano – não havia nenhuma relação com a família Mendel”. O manuscrito não pertencia à Sociedade de História Natural de Brunn, segundo ele, mas teria sido devolvido a Mendel pelo tipógrafo juntamente à primeira prova, como era de costume na época, e havia sido de propriedade dos agostinianos desde então.

Padre Clemens começou a mudar sua história sobre a posse do manuscrito, sugerindo que ele na realidade pertencia aos agostinianos, disse William Taeusch, marido de Schmidt. “Ele começou a dizer à família: ‘Não seriam eles os donos por direito?’ A família disse: ‘O que está acontecendo, pelo amor de Deus? Se você o recebeu e foi informado de que ele era de propriedade dos agostinianos, por que o manteve consigo por 11 anos e depois assinou um contrato falso passando-o à família?’”

Numa pequena reunião da empresa familiar, em 9 de maio, à qual diversos membros não compareceram, inclusive Schmidt, três membros decidiram mostrar misericórdia pela situação do Padre Clemens. Eles retiraram o manuscrito do cofre e o levaram para Clemens, em Stuttgart. Clemens disse ao Padre Dominic que poderia voar de Viena e coletá-lo em 11 de maio.

Taeusch afirmou ter ligado para as autoridades culturais da Alemanha para avisá-los de que o manuscrito estava prestes a ser retirado do país. Segundo ele, em seguida os agostinianos entregaram o manuscrito a seus advogados, a empresa Wahlert, em Stuttgart, onde ele deve permanecer até que a posse seja determinada. Marion Jung, oficial de imprensa do Ministério da Ciência, Pesquisa e Cultura do estado de Baden-Wurttemberg, na Alemanha, confirmou que o ministério estava examinando o caso e decidiria se o manuscrito era autêntico – e se ele deveria ser colocado numa lista de tesouros culturais que não podem deixar o estado.

Schmidt disse que gostaria de ver o manuscrito entregue a uma instituição pública, como a sociedade Sudeten Germansin Munich ou a Universidade de Heidelberg. “É um pouco triste. Poderia ser tão maravilhoso, mas agora há toda essa tensão e briga. E estou bastante chocada pela igreja vir com essas ameaças”, disse ela.

Na história da biologia moderna, o artigo de Mendel é provavelmente o segundo em importância – atrás apenas do de Darwin, “A Origem das Espécies”. Mendel fez 40 reproduções de seu artigo, que enviou a notáveis científicos da época. Existem relatos de que uma cópia chegou a Darwin e foi descoberta entre seus documentos com as páginas não cortadas, uma tarefa que os editores daquele tempo muitas vezes deixavam aos leitores. A história da biologia poderia ter sido bastante diferente se Darwin tivesse lido o artigo de Mendel, reconhecido que ele proporcionava uma teoria de hereditariedade melhor que a sua própria, e incorporado as informações em edições futuras de sua obra.

Porém, a atraente história do artigo com as páginas não cortadas parece ser incorreta, segundo uma pesquisa conduzida pelos editores dos artigos de Darwin na Universidade de Cambridge. A fonte da história parece ser um livro de 1881 sobre criação de plantas por W.O. Focke. Sua descrição da obra de Mendel, entretanto, era provavelmente curta demais para fazer Darwin abandonar suas próprias ideias.

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