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Viciados em heroína injetam sangue de usuários e elevam risco de Aids na África

Por Donald G. McNeil Jr.

The New York Times

19/07/2010 17h12

Usuários de heroína desesperados de algumas cidades africanas começaram a adotar uma prática tão perigosa que é quase impensável: eles injetam neles mesmos, propositalmente, sangue de outros viciados, numa tentativa de compartilhar o “barato” ou adiar o sofrimento da abstinência.

A prática, chamada de “flashblood” ou “flushblood”, não é comum, mas vem sendo relatada em Dar es Salaam, na Tanzânia, na ilha de Zanzibar e em Mombasa, no Quênia.

Ela coloca os usuários em grande risco de contrair Aids e hepatite. Embora a maioria das transmissões do vírus da Aids na África seja por relações sexuais heterossexuais, o uso de heroína está crescendo em algumas cidades. E especialistas alertam que o “flashblood” – junto com o compartilhamento de seringas e outros hábitos perigosos – pode alimentar uma nova onda de infecção de Aids.

“Injetar em si mesmo sangue fresco é uma prática maluca – é a forma mais eficaz de se infectar com HIV”, disse a Dra. Nora D. Volkow, diretora do Instituto Nacional de Abuso de Drogas, que apóia os pesquisadores que descobriram a prática. “Embora o número de pessoas que fazem isso seja um grupo relativamente pequeno, elas são vetores para o HIV, pois se mantêm pelo trabalho sexual”.

Sheryl A. McCurdy, professora de saúde pública da Universidade do Texas, em Houston, descreveu a prática pela primeira vez há cinco anos, numa breve carta para o “The British Medical Journal”, e recentemente publicou um estudo sobre a prática no jornal “Addiction”.

“Não sei exatamente o quanto a prática está disseminada”, disse McCurdy, que está contactando outros pesquisadores que trabalham com viciados para que eles façam pesquisas com seus participantes sobre o tema. “Existe um movimento circular na África Oriental, então não me surpreenderia se a prática ocorrer em outras cidades”.

O aumento do uso de heroína em partes da África pode aumentar a epidemia de Aids.

Na maioria de países da África Oriental, como Tanzânia e Quênia, apenas de 3% a 8% dos adultos estão infectados com o vírus da Aids, muitos menos do que no sul da África, onde os índices chegam de 15% a 25%.
No entanto, entre as pessoas que injetam heroína, os índices são muito maiores. Na Tanzânia, cerca de 42% dos viciados estão infectados. O índice é ainda maior – 64% – entre as mulheres viciadas, disse McCurdy.

Como a maioria delas se sustenta com a prostituição, elas estão em dois grupos de alto risco e seus clientes se arriscam a pegar a doença.

"Gentileza"

A maioria das pessoas viciadas entrevistadas por McCurdy que praticam flashblood são mulheres. Para elas, compartilhar o sangue é mais um ato de gentileza do que uma tentativa de sentir um “barato”: uma mulher que conseguiu dinheiro suficiente para comprar um sachê de heroína compartilha o sangue para ajudar uma amiga a evitar a abstinência. A amiga muitas vezes é uma colega que também vende o corpo para se manter e está velha ou doente demais para conseguir clientes.

Em contraste, em Zanzibar, a maioria dos que praticam flashblood são homens, de acordo com um estudo de 2006 publicado no “The African Journal of Drug and Alcohol Studies”, que descobriu que cerca de 9% dos 200 usuários de drogas injetáveis adotavam a prática.

Também tem havido relatos em jornais da África Oriental de viciados que vendem seu sangue, mas tais relatos não foram confirmados por pesquisadores médicos.

Há também relatos esporádicos de práticas semelhantes ao flashblood em outros países com um número grande de usuários de heroína, incluindo o Paquistão, mas também não foram confirmados por pesquisadores.

O fato de que alguém realmente consegue sentir um “barato” a partir de uma quantidade de sangue relativamente pequena nunca foi confirmado em testes, disse McCurdy. Os humanos possuem cerca de cinco litros de sangue no corpo, e os usuários que praticam o flashblood injetam menos de uma colher de chá.

“Eles dizem que sentem”, afirmou McCurdy. “Eles desmaiam como se acabassem de sentir um barato. Mas falei com médicos que afirmam que pode ser um efeito placebo”.

Uma possibilidade, ela disse, é que resquícios da droga ainda estejam na seringa. Depois de furar uma veia, um viciado normalmente extrai um pouco de sangue na seringa e o coloca de novo, repetindo a operação três ou quatro vezes, para garantir que toda a heroína foi inserida no sangue. Os que oferecem flashblood normalmente entregam a seringa depois de um ciclo de extração e inserção de sangue.

A heroína vendida na África Oriental, acrescentou McCurdy, é forte porque vem de envios relativamente puros a caminho da Europa, vindos do Afeganistão ou da Ásia.

Droga nova

Até recentemente, o uso de heroína não era comum no continente, pois a maioria dos africanos é pobre demais para interessar aos traficantes. No entanto, na última década, os traficantes começaram a usar cidades portuárias pobres, como Dar es Salaam e Mombasa, e cidades com aeroportos, como Nairóbi e Johanesburgo, como estações da rota: oficiais responsáveis pelo cumprimento da lei podem ser subornados e transportadores de países sem histórico de tráfico de drogas podem escapar das revistas por parte de oficiais de fronteira da Europa. Os transportadores podem ser pagos em drogas, que são revendidas.

Com mais usuários locais, mais heroína está sendo vendida na África. Na última década, segundo agências de fiscalização e tratamento de drogas, especialmente no Quênia e na Tanzânia, África do Sul e Nigéria. A heroína marrom que deve ser aquecida e inalada deu lugar à heroína branca solúvel em água, capaz de ser injetada. Os preços caíram em até 90%.

Embora uma colher de chá de sangue seja mais que suficiente para transmitir doenças como Aids, disse o Dr. James AuBuchon, presidente eleito da Associação Americana de Bancos de Sangue, a quantidade não seria suficiente para causar uma reação imunológica com risco de morte, como pode ocorrer quanto um paciente recebe uma transfusão de alguém com o tipo de sangue errado. Em vez disso, “a pessoa provavelmente só apresenta sintomas leves”, ele disse.

AuBuchon, que atua em Seattle, disse nunca ter ouvido falar do flashblood, mas acrescentou estar horrorizado com a ideia. “O que essas pessoas pensam?”, perguntou.