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Exames de imagem modificaram conduta médica em relação à apendicite

Por Perri, Klass, M.D

The New York Times

16/08/2010 17h15

Vamos começar por “Madeline”. Naquela clássica história infantil de Ludwig Bemelmans, publicada em 1939, a menininha francesa do título acorda no meio da noite com forte dor abdominal e o médico corre para levá-la à mesa de cirurgia.

Encantada com o livro quando tinha a idade de Madeline (e depois quando li a história para meus filhos), memorizei o número de telefone do hospital como se algum dia pudesse precisar dele. “Enfermeira”, disse o médico, “é apendicite!”

Depois a ambulância, cirurgia, acordar da anestesia, dez dias no hospital e alta (para a casa antiga coberta de vinhas). Ah, e a cicatriz na barriga.

Quando era residente, a história ainda era essa, embora as estadas no hospital geralmente fossem menores. O diagnóstico era feito em grande parte através do levantamento de histórico médico e exame físico; meio século depois da experiência de Madeline, e um século depois que a apendicite foi descoberta e nomeada pela primeira vez (em 1886, por Reginald Heber Fitz, patologista de Harvard), ainda não havia forma de saber ao certo se a dor abdominal de uma criança era causada por um apêndice inflamado.

Eu me lembro da vibração de fazer o diagnóstico pela primeira vez, em 1986 ou 87. Eu vi a criança na emergência e chamei os cirurgiões, e o menino acabou indo para a sala de cirurgia. O problema é que ele não tinha apendicite; quando os cirurgiões o abriram, encontraram um apêndice saudável que, é claro, foi removido.

Mas, como os cirurgiões nos contaram, isso apenas mostrava que estávamos indo bem. O risco de deixar passar uma apendicite aguda é que a o apêndice inflamado da criança pode desenvolver uma perfuração e o conteúdo do intestino pode vazar na cavidade abdominal, tornando a cirurgia muito mais complexa e perigosa.

Assim, a menos que retirássemos determinado número de apêndices saudáveis (entre 10% e 20%), certamente perderíamos alguns casos de apendicite aguda. Aprendemos que examinar o abdômen de uma criança era um marco para um bom diagnóstico, mas fomos tranquilizados de que às vezes até os melhores diagnosticadores às vezes levam para a cirurgia uma criança com cólica ou gastrenterite – uma “apendectomia negativa”.

No entanto, na última década grandes progressos foram alcançados na área de exames por imagem. Pelo menos em crianças menores, o ultrassom hoje pode mostrar a apendicite claramente, ou ajudar a descartá-la. Exames de tomografia computadorizada são ainda mais claros, mas expõem o paciente a radiação ionizante que tem levado a crescentes preocupações sobre os riscos futuros de câncer.

Administração

Também tem havido mudanças na administração da apendicite aguda. Algumas crianças com perfuração já não passam mais por essas operações dramáticas de emergência.

Mesmo assim, a apendicite continua sendo uma fonte de complexidade diagnóstica. Afinal, criancas pequenas são muitas vezes incapazes de descrever seus sintomas. Dor firme ou cólica, fina ou obtusa, todo o vocabulário da dor não representa nada para uma criança de 3 anos, que só sabe dizer que dói.

“A apresentação em crianças é muito mais ambígua; nem sempre temos a clássica história da dor umbilical em deslocamento”, disse David G. Bundy, professor-assistente de pediatria da Johns Hopkins e especialista em melhoria da qualidade e segurança do paciente.

Quase 20 anos depois de ter iniciado minha residência, meu próprio filho, na época com 8 anos, acordou no meio da noite, chorando de dor. Quando os médicos da emergência pediram que ele apontasse o local onde mais doía, ele indicou o ponto de McBurney, no lado inferior direito do abdômen, o local clássico da dor de apendicite.

Tive certeza de que ele logo estaria na sala de cirurgia. Mas era o ano de 2003, e um exame sofisticado não apenas mostrou que seu apêndice estava normal e sem inflamação, mas também indicou de onde vinha a dor um pedaço de tecido abdominal torcido. Isso melhoraria sozinho e ele ficaria bem, como prometeu o cirurgião – e foi o que aconteceu.

O cirurgião, Craig W. Lillehei, hoje é professor-assistente de cirurgia da Faculdade de Medicina de Harvard. Perguntei a ele como o dilema do diagnóstico tinha mudado ao longo de sua carreira.

“Uma das coisas com as quais estamos tendo de lidar em pediatria é que nos tornamos dependentes demais da tomografia computadorizada”, ele disse. “Ela se tornou muito útil para identificar apendicite, mas implica radiação”.

Tampouco foi provado que as novas técnicas de exames de imagem reduzem o índice geral de remoção do apêndice em crianças. Porém, os médicos ainda se preocupam em deixar passar casos de apendicite e as consequências médicas e legais de mandar uma criança para casa sem realizar um exame de imagem. É claro, nem toda dor de barriga exige uma tomografia computadorizada.

E nem todo apêndice perfurado hoje exige cirurgia emergencial. Não faz muito tempo, cuidei de uma criança com dor abdominal cujo exame de tomografia computadorizada tinha revelado um apêndice perfurado. No entanto, em vez de operá-la imediatamente, os cirurgiões a trataram com antibióticos intravenosos para abrandar a infecção e agendaram uma apendicectomia alguns meses depois.

Antibióticos

Hoje em dia, uma perfuração recente ainda pode ser tratada com cirurgia; uma perfuração que evoluiu para um abscesso provavelmente será drenada com uma agulha e tratada com antibióticos. Mas existe uma grande área cinzenta na qual alguns cirurgiões operariam e outros usariam primeiramente o antibiótico.

“Sempre acho impressionante que saibamos sobre apendicite há tanto tempo e em 2010 ainda haja tanta controvérsia”, disse a Dra. Catherine Chen, cirurgiã pediátrica e professora-assistente de cirurgia da Faculdade de Medicina de Harvard.

Então o que aconteceria com Madeline hoje? O médico dela pode não ter habilidades de diagnóstico físico; ela pode passar por um raio-X, ultra-som e possivelmente tomografia computadorizada. Dependendo do fato de ter ou não perfuração, ela pode ser tratada com antibióticos ou pode seguir diretamente para a sala de cirurgia.

Mesmo assim, os elementos da história permanecem: um acontecimento inesperado na vida de uma criança saudável, o dilema do diagnóstico, o hospital, a questão de realizar ou não a cirurgia. A apendicite continua sendo um caso clássico para usar suas ferramentas de diagnóstico ponderadamente e inteligentemente. E ainda significa estar errado algumas vezes.

Ah, por falar nisso, se eles chegassem a operar Madeline hoje, provavelmente optariam por cirurgia de laparoscopia. Ela não acabaria com aquela cicatriz na barriga que exibe com tanto orgulho.