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Cantar suprime a gagueira? Veja mitos e verdades sobre o problema abordado em "O Discurso do Rei"

Por Cristina Almeida

Especial para o UOL Ciência e Saúde

19/02/2011 07h00

Problemas psicológicos são a causa da gagueira? Forçar um canhoto a ser destro pode deflagrar o distúrbio da fala? Quando canta, todo gago deixa de gaguejar? Confira, abaixo, os principais mitos relacionados ao distúrbio apresentado no filme "O Discurso do Rei":

A gagueira sempre começa na infância

PARCIALMENTE VERDADEIRO -  De modo geral a gagueira clássica se manifesta entre os 3 e os 7 anos, ou  no início da adolescência. Na idade adulta, pode ocorrer o que se conhece por pseudogagueira ou gagueira psicogênica, quadro raro que tem como base algum fator emocional. Apesar de ter características semelhantes, apresentam diferenças sutis. Em geral, esses casos devem ter acompanhamento psiquiátrico. Vale destacar que cerca de 5% das crianças apresentam alguma forma de gagueira no início do aprendizado da fala. Para 20% delas, o fenômeno persiste. A indicação dos especialistas é que os pais fiquem atentos, caso os sintomas persistam por mais de 6 meses, pois isso poderia ser indício de quadro teria se tornado crônico.

A gagueira é contagiosa, principalmente na infância

FALSO -  Uma criança que nasça numa família de gagos poderá gaguejar pela herança genética, e não por aprendizado. Isso significa que, mesmo se ela viesse a ser criada por uma família adotiva, ela apresentaria uma tendência para gaguejar. Por outro lado, se quem gagueja é um modelo para a criança, ela poderá imitar essa condição, assim como o faria se fosse uma outra prática repetitiva como um tique. Nesse caso, trata-se apenas de uma imitação e a alteração é transitória.

A gagueira tem relação com problemas na língua e na garganta

FALSO – Grande parte dos casos apresenta alterações motoras (tiques de esforço), mas a gagueira não possui relação com problemas anatômicos na língua ou garganta.  Algumas disfluências podem ter como causa problemas anatômicos, como a glossopexia (língua presa), que se resolve com uma simples cirurgia. O papel do otorrinolaringologista é afastar outras condições semelhantes à gagueira, por meio de exames específicos. Algumas linhas terapêuticas se utilizam de exercícios para tonificar e mobilizar estes órgãos, como forma auxiliar da promoção da fluência, bem como exercícios para voz, porém esta relação é indireta.

Forçar o canhoto a ser destro pode causar a gagueira

FALSO – Apesar da antiga hipótese de que a gagueira estaria relacionada à lateralidade cerebral atípica, ainda não existem dados conclusivos que indiquem associação com a preferência do uso das mãos. Ser canhoto poderia ser um marcador dessa característica, assim como da dominância cerebral. Estudos preliminares realizados pelo The Stuttering Foundation, sob a direção de Anne Foundas, professora de neurologia da Tulane University Health Sciences Center, de Nova Orleans (USA), mostraram apenas que há mais mulheres gagas entre os ambidestros e, entre os canhotos, os homens são a maioria.

Estresse,  nervoso, problemas psicológicos são causas da gagueira

FALSO – Em tese esses fatores podem agravar e complicar o quadro, mas não podem ser consideradas causas isoladas. O desencadeamento da gagueira se dá por meio da confusão na temporalização das ordens cerebrais na elaboração da fala, e a partir do pensamento do que deve ser dito, enquanto se fala com outras pessoas. Diante de uma pressão psicológica, o distúrbio pode até se intensificar, mas as origens da gagueira são de natureza genética e neurológica. Nos casos em que a gagueira se manifesta na idade adulta (psicogênica), e eles são mais raros, a origem psicológica é evidente, e o trauma funciona como um desencadeador. Para os psicanalistas, que partem de uma visão científica moderna, não existem verdades ou objetividade absolutas.  A subjetividade, sim, deve ser considerada, pois a fala é a expressão dos pensamentos e sentimentos e é utilizada como veículo da comunicação humana.

Cantar suprime a gagueira

VERDADEIRO – Segundo os especialistas, em geral, pode ocorrer a supressão completa ou parcial durante o canto. A explicação para isso é o uso de diferentes áreas cerebrais para falar e cantar. Enquanto a fala se desenvolve a partir do hemisfério esquerdo, o canto é elaborado em diversas áreas cerebrais, mas especialmente no hemisfério direito. Além disso, quem gagueja tem o ritmo da fala alterado. Ao cantar, a pessoa estabelece ritmo pré determinado e, assim, o distúrbio não se manifesta. Outra explicação para isso é que o canto é apenas reproduzido e não processado como a fala.

Quando um gago não ouve a própria voz, ele deixa de gaguejar

PARCIALMENTE VERDADEIRO –  Quando um gago deixa de escutar a própria voz, seja com  algum impedimento silencioso ou musical, a gagueira tende a melhorar. Isso ocorre porque não existe a confrontação do elaborar ideias de forma rápida para repassá-las a outra pessoa com quem se fala, como acontece durante uma conversa ou apresentação. Essa modificação do feedback auditivo é uma técnica utilizada em algumas linhas terapêuticas, mas não é uma solução definitiva, e nem todos dela se beneficiam.

Quem gagueja precisa de psicólogo e não de outro especialista

FALSO – O profissional treinado para avaliar e tratar a gagueira é o fonoaudiólogo. Mas o paciente precisa ser visto como um ser biopsicossocial. Por isso, o tratamento tem sido multidisciplinar, envolvendo a atuação de psiquiatra, psicólogo, neurologista e otorrinolaringologista. Entretanto,  nem todos aqueles que gaguejam têm necessidade de um acompanhamento psicológico. Quando a gagueira interfere na vida profissional, afetiva, social e ainda traz prejuízos emocionais secundários como diminuição da autoestima e até bullying, essa intervenção pode ser de grande ajuda. Nos casos de gagueira psicogênica, a intervenção de um psiquiatra e/ou psicólogo é essencial, mas não exclui os demais. Outro ponto a ser considerado é a importância do desenvolvimento da responsabilidade de adesão ao tratamento. Como visto no filme, para além das técnicas aplicadas, parte do sucesso do tratamento se garante com compreensão, confiança, respeito, isto é,  a relação e o vínculo estabelecidos entre o profissional e o paciente.

A gagueira pode ser controlada sem ajuda de especialistas, desde que o gago se esforce com dedicação

FALSO - É muito difícil controlar a gagueira sem auxílio profissional. Além disso, quem gagueja não o faz por ser descuidado ou pouco esforçado, mas porque possui uma alteração na área cerebral encarregada de controlar movimentos automáticos como a fala. A gagueira é involuntária. Por meio de terapia o paciente aprenderá técnicas para controlá-la, e aí sim, precisará de dedicação para se manter vigilante e administrá-la.

Gagueira não tem cura

PARCIALMENTE VERDADEIRO – Para adultos, existe tratamento e controle, mas raramente se alcança a remissão completa do distúrbio. Se houver diagnóstico precoce na infância, há chances de que o quadro não evolua. Os tratamentos disponíveis buscam reduzir ou controlar a gagueira para que ela interfira minimamente na vida do gago. Recentes pesquisas se direcionam para a alteração da modulação neurotransmissora cerebral. Medicamentos que agem na região da fala têm sido testados, com bons resultados iniciais. Uma estratégia de tratamento com ação multidisciplinar pode melhorar consideravelmente a qualidade de vida desses pacientes em todos os seus aspectos.


Fontes: AbramTopczewski,  neurologista da infância e adolescência do Hospital Albert Einstein; Alice Estevo Dias, fonoaudióloga do Hospital Nove de Julho; Ana Lucia Artoni Kozonara, fonoaudióloga do Centro de Reabilitação de Hospital Albert Einstein;  Anita Aparecida Lopes, psicóloga da Clínica da Dor do Hospital Nove de Julho; Clara Rocha,  fonoaudióloga responsável pela Divisão de Aparelhos para Fluência do Grupo Microsom; José Luiz Rodrigues, otorrinolaringologista, Professor Assistente no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP); Maria do Carmo Branco, fonoaudióloga e gerente de produtos do Grupo Microsom; Patricia de Rissio, fonoaudióloga e especialista em Distúrbios da Comunicação do Grupo Microsom e Rubens Volich,  psicanalista,  professor do Instituto Sedes Sapientiae.