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Expressões como "né", "ã" e "bom" são estratégias para disfarçar a gagueira, diz especialista

Por Cristina Almeida

Especial para o UOL Ciência e Saúde

19/02/2011 07h00

A gagueira sempre foi explorada nas comédias da TV e do cinema. E pode até ser um diferencial quando o objetivo é chamar atenção, como no caso do participante do BBB11 Diogo. Já no drama “O Discurso do Rei”, o distúrbio de fluência é apresentado como um fardo que só aumenta a angústia do herdeiro do Império Britânico. Retratada fielmente ou não, a história do Rei George 6º trouxe a oportunidade de desfazer crenças sobre um distúrbio que se mantém estável em todas as culturas e grupos sociais.

A gagueira, ou disfemia, acomete 1% da população mundial (no Brasil são cerca de 2 milhões de pessoas), e durante muito tempo pensou-se que sua causa fosse exclusivamente psicológica. Com o avanço das pesquisas científicas, hoje há evidências de que a genética tem papel preponderante, e pessoas de uma mesma família, em diferentes gerações, carregam o gene correspondente. O distúrbio se manifestará ou não, e isso dependerá de questões ambientais. Disfunções ou lesões  também são outras causas possíveis.

A fonoaudióloga e especialista em neurologia Alice Estevo Dias, do Hospital Nove de Julho, confirma que a maioria dos casos tem conexão com a genética, e o percentual restante é consequência de alguma lesão cerebral. “Trata-se de um distúrbio neurológico, que decorre de alterações em uma área do cérebro denominada núcleo de base, cuja função é a automatização de tarefas como andar de bicicleta, dirigir, escrever e falar. O resultado dessa alteração é o prejuízo no movimento da fala espontânea”, explica.

Somos todos gagos?

O uso de expressões como olha, né, é, ã, bom, então, etc, assim como a substituição de palavras e circunlocuções, são outras estratégias utilizadas para disfarçar a manifestação da gagueira. “Mas apesar desses recursos há quem evite ou fuja de algumas situações, como falar ao telefone, com o chefe ou professor, e até participar de reuniões”, conta Dias. A razão para isso é que a fala tem um papel importante para a autoestima de toda pessoa. Na vida real, gagos podem preferir não se expor, pois essas circunstâncias geram mais constrangimento e insegurança. E mesmo para um “Rei”, sobre quem depositavam-se altas expectativas, esses sentimentos não eram diferentes.

Para o psicanalista Rubens Volich, professor do Instituto Sedes Sapientiae e autor do livro "Psicossomática, de Hipócrates à Psicoanálise" (ed. Caso do Psicólogo), a maioria das pessoas sabe  bem o que são essas sensações: “Somos todos gagos, e guaguejamos na infância até que haja natural maturação neurobiológica. E algumas pessoas perpetuam esse comportamento”, defende.

“Quando estamos sob forte impacto emocional, diante de um público desconhecido, ou onde haja expectativa de adequação e aceitação, haverá sempre uma natural hesitação”, descreve. “Às vezes, não é a pessoa quem gagueja, mas seu  pensamento.”

Capacidade intelectual

A dificuldade de iniciar um discurso, e a forma rápida como depois as demais palavras são emitidas são a possível origem do mito de que gagos são pessoas dotadas de pouca capacidade intelectual ou maior nervosismo. Mas o fato é que a gaguice acontece de modo involuntário. “Não se gagueja porque se quer, ou  porque não se consegue controlá-la, esclarece Dias. “O que acontece na prática é que o gago, quando deseja falar, precisa repetir várias vezes o início da palavra, até que o cérebro consiga disparar o comando que permite a emissão do restante dela”, completa.

Dados científicos disponibilizados pela  Associação Britânica para a Guagueira mostram que grupos de gagos e não gagos são idênticos em termos de inteligência, estado mental e comportamento neurótico. “A única diferença encontrada nessa população é que uma parte dela guagueja, a outra não. Portanto, a velocidade da fala não deve ser confundida com a velocidade do pensamento. Um gago, em geral, pensará numa velocidade normal, ainda que a expressão de seus pensamentos possa ser mais lenta”, concluíram os pesquisadores.

Fácil diagnóstico

Uma vez observadas todas as características clínicas, o distúrbio é considerado de fácil diagnóstico. De acordo com o otorrinolaringologista José Luiz Rodrigues, professor assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), é  preciso apenas estar atento para diferenciá-lo de outras disfluências, “assim como de outras causas de gagueira latu senso, isto é, aquelas relacionadas a lesões cerebrais:  trauma, Acidente Vascular Cerebral (AVC), doenças degenerativas neurológicas ou musculares, além da pseudogagueira, de origem psíquica, comum entre adultos”.

Os especialistas concordam que um dos méritos do filme foi mostrar o que não funciona, como, por exemplo, o uso de bolas de gude ou o incentivo ao tabagismo para relaxar as pregas vocais (responsáveis pela emissão da voz).

Próximos à realidade estão os exercícios respiratórios, vocais e rítmicos, o uso de trava línguas, além de relaxamento e diálogos. “O terapeuta do 'Rei', com suas técnicas de locução para falar em público e o emprego do mascaramento, isto é, audibilidade da própria voz reduzida pela presença de música ouvida por meio de fones de ouvido, foi o precursor de um método que se assemelha às tecnologias hoje existentes”. Mas o tratamento varia conforme a idade do paciente e o tempo de gagueira.