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Livre-arbítrio pode não existir, mas acreditar nele é fundamental à sociedade

Por John Tierney

The New York Times

31/03/2011 07h00

Suponhamos que Mark e Bill vivam em um universo determinista. Tudo o que acontecer hoje de manhã - como a decisão de Mark sobre vestir uma camisa azul ou a última tentativa de Bill de pentear o pouco que lhe resta de cabelo - será totalmente causado pelo que quer que tenha acontecido antes.

Se você recriou esse universo começando lá pelo Big Bang e permitiu que todas as situações ocorressem exatamente da mesma forma até hoje de manhã, então a camisa azul terá sido mesmo tão inevitável quanto a tentativa de pentear um chumaço de cabelo para disfarçar o calvo.

Agora as perguntas de filósofos experimentais: 1) Neste universo determinista, é possível que uma pessoa seja totalmente responsável por suas ações, em se tratando de moralismo? 2) Neste ano, tal como já costumava fazer, Mark se prepara para burlar os impostos. Em termos moralistas, ele é totalmente responsável por suas ações? 3) Bill se apaixona por sua secretária e decide que a única forma de ficar com ela é assassinando sua mulher e seus três filhos. Antes de viajar, ele arma para que eles sejam mortos enquanto está fora. Em termos moralistas, Bill é totalmente responsável por suas ações? Para um filósofo clássico, essas são apenas três versões do mesmo questionamento a respeito de livre-arbítrio. Mas para a nova geração de filósofos que testam as respostas das pessoas para conceitos como o determinismo, essas diferenças são cruciais, segundo explica Shaun Nichols na atual edição da “Science”.

A maioria dos entrevistados isentaria a pessoa não especificada da pergunta 1 de total responsabilidade por suas ações e a maior parte ainda apoiaria Mark em sua tentativa de driblar o processo tributário. Com Bill já seria diferente. Ele seria totalmente culpado pelo crime hediondo, de acordo com mais de 70 por cento das pessoas entrevistadas por Nichols, filósofo experimental da Universidade do Arizona, e Joshua Knobe, seu colega de Yale.

Estaria Bill sendo julgado de maneira ilógica? De certa forma, sim. A linha de raciocínio parece oscilar para determinados filósofos e a crença no livre-arbítrio parece ingênua a psicólogos e neurocientistas que sustentam a ideia de que todos nós somos conduzidos por forças que estão além do nosso controle consciente - argumento que o advogado de defesa de Bill poderia usar no tribunal.

Contudo, por outro lado, é perfeitamente sensato responsabilizar Bill pelo assassinato. Seus julgamentos intuem de maneira pragmática que, existindo ou não o livre-arbítrio, nossa sociedade depende de todos acreditarem que sim.

Os benefícios dessa crença foram demonstrados em outra pesquisa, atestando que, quando as pessoas questionam a existência do livre-arbítrio, elas tendem a ter problemas no trabalho e a ser menos honestas.

Em um experimento, algumas pessoas leram uma passagem de Francis Crick, biólogo molecular, que declarava ser o livre-arbítrio um conceito singular antigo não mais levado a sério pelos intelectuais, principalmente aqueles que não atuam nas áreas de psicologia e neurociência. Mais tarde, quando comparadas com um grupo de controle que leu uma passagem diferente de Crick (morto em 2004), essas pessoas expressaram mais ceticismo quanto ao livre-arbítrio - imediatamente cobrindo-se de brechas moralistas ao realizar um teste de matemática.

Quando solicitadas a resolverem uma batelada de problemas aritméticos em um teste computadorizado, elas trapaceavam, obtendo as respostas por meio de um glitch (ou falha técnica) no computador, coisa que não deveriam acessar. O suposto glitch, é claro, havia sido colocado ali pelos pesquisadores Kathleen Vohs, da Universidade de Minnesota, e Jonathan Schooler, da Universidade da Califórnia, Santa Barbara, no intuito de aguçar a curiosidade dos participantes.

Em um experimento de acompanhamento, os psicólogos administraram mais um teste, em que prometiam oferecer um dólar por resposta correta_e depois compilar suas próprias pontuações. Exatamente como Vohs e Schooler temiam, as pessoas apresentaram maior propensão a trapacear após terem sido expostas de antemão a argumentos sobre o livre-arbítrio. Essas pessoas voltaram para casa com maior quantia de dinheiro desmerecido do que as outras pessoas.

No laboratório, esse comportamento, observaram os pesquisadores, remete a estudos recentes que demonstram um aumento no número de alunos de faculdade que admitem trapacear. Durante esse mesmo período, outros estudos apontaram um enfraquecimento da crença popular quanto ao livre-arbítrio (embora ele ainda seja amplamente difundido).

“Duvidar do livre-arbítrio de alguém pode debilitar o senso de agir naturalmente”, concluem Vohs e Schooler. “Ou, talvez, negar o livre-arbítrio simplesmente promova o pretexto elementar de comportar-se de acordo com a vontade alheia”.

Isso inclui a isenção de responsabilidade, segundo outro estudo realizado por Vohs e uma equipe de psicólogos liderados por Tyler F. Stillman da Universidade Southern Utah. Eles se dirigiram a uma agência de empregos temporários munidos de questionários que alguns profissionais deveriam preencher de maneira confidencial.

Esses questionários tiveram como base um instrumento de pesquisa desenvolvido

anteriormente, chamado de Escala do Livre-Arbítrio e do Determinismo. Perguntou-se aos profissionais até que ponto eles concordavam com declarações como “O poder da mente pode sempre superar os desejos do corpo”, “As pessoas são plenamente capazes de superar todos os obstáculos que quiserem” ou então “As pessoas não escolhem as situações pelas quais acabam passando_elas simplesmente acontecem”.

Os psicólogos também mediram outros fatores, inclusive a satisfação geral dos profissionais com relação às suas vidas, a energia que sentiam no dia a dia, até que ponto eles defendiam a ética no trabalho e outros. Nenhum desses fatores foi considerado um indicador confiável de real desempenho deles no trabalho, conforme classificado por seus supervisores. No entanto, quanto mais altas as pontuações dos profissionais na escala da crença no livre-arbítrio, melhores foram suas classificações no trabalho.

Mais ética

“O livre-arbítrio conduz as escolhas das pessoas a um ponto em que elas se tornam melhores e mais éticas”, afirma Vohs. “Acreditar no livre-arbítrio é algo adaptável para sociedades e indivíduos, pois isso ajuda as pessoas a aderir a códigos de conduta culturais que tragam resultados na saúde, no bem-estar e na felicidade de suas vidas”.

Os conceitos intelectuais de livre-arbítrio podem variar consideravelmente, mas parece haver uma crença universal razoavelmente forte de que o conceito comece muito cedo. Quando crianças com idades entre 3 e 5 anos veem uma bola rolando dentro de uma caixa, elas dizem que a bola deveria estar ali mesmo.

Mas quando veem alguém colocando a mão na caixa, elas insistem que algo mais então pode acontecer com a bola.

Essa crença parece persistir independentemente de onde as pessoas foram criadas, conforme filósofos experimentais descobriram ao questionar adultos de culturas distintas, incluindo Hong Kong, Índia, Colômbia e Estados Unidos. Sejam quais forem suas diferenças culturais, as pessoas tendem a rejeitar a noção de que vivem em um mundo determinista sem livre-arbítrio.

As pessoas tendem a concordar, entre diferentes culturas, com o fato de que uma pessoa hipotética, em um mundo hipoteticamente determinista, não seria responsável pelos pecados que cometeu. Essa mesma lógica explica por que elas absolveriam a evasiva de Mark quanto aos impostos, ou seja, um crime que não apresenta uma vítima evidente. Mas essa lógica não convence quando as pessoas são confrontadas com o que os pesquisadores chamam de transgressão disciplinar afetiva um crime emocionalmente desconcertante, como o assassinato da família de Bill.

“São dois tipos diferentes de mecanismos no cérebro”, constatou Alfred Mele, filósofo da Universidade Estadual da Flórida, dirigente dos Grandes Questionamentos do projeto de Livre-Arbítrio. “Se você der às pessoas uma história abstrata e uma pergunta hipotética, estará alimentando a máquina teórica em suas mentes. Mas suas teorias poderão se desalinhar com suas reações intuitivas a uma história detalhada sobre alguém que faz algo desagradável. Conforme mostram os pesquisadores, a principal hipótese das pessoas é a de que nós temos livre-arbítrio”.

Em nível abstrato, as pessoas parecem ser aquilo que os filósofos chamam de incompatibilistas: aqueles que acreditam que o livre-arbítrio seja incompatível com o determinismo. Se tudo o que acontece é determinado por algo que tenha acontecido antes, então há lógica em se concluir que você não pode ser moralmente responsável pela sua próxima ação.

Determinismo

Existe também uma escola de filósofos - possivelmente a escola da maioria - que consideram o livre-arbítrio compatível com a definição de determinismo.

Esses compatibilistas acreditam que nós fazemos escolhas, embora elas sejam determinadas por situações e influências anteriores. Nas palavras de Arthur Schopenhauer, “O homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”.

Isso parece confuso - ou ridiculamente ilógico? Compatibilismo não é algo fácil de explicar. Mas ele parece estar em sintonia com o nosso instinto básico de que Bill seja moralmente responsável, embora viva em um universo determinista. Nichols sugere que seu experimento com Mark e Bill aponta que em nossos cérebros abstratos somos incompatibilistas, mas em nossos corações somos compatibilistas.

“Isso ajuda a explicar a persistência da polêmica filosófica sobre o livre-arbítrio e a responsabilidade moral”, escreve Nichols na Science.

“Parte da razão de que o problema do livre-arbítrio seja tão resiliente é o fato de que cada posição filosófica abrange um conjunto de mecanismos psicológicos que torcem por ela”.

Alguns cientistas preferem ignorar a crença intuitiva no livre-arbítrio como um exercício de autoilusão - um indício simplista de “confabulação”, segundo a visão de Crick. No entanto, esses especialistas estarão se iludindo se pensarem que a questão está resolvida. O livre-arbítrio não foi desaprovado científica ou filosoficamente. Quanto mais os pesquisadores investigam o livre-arbítrio, melhores são as razões para acreditar nele.