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Maioria do Supremo apoia interromper gravidez de anencéfalos; julgamento prossegue

Maurício Savarese

Do UOL, em Brasília

12/04/2012 15h09

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) apoia a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos, também chamada antecipação terapêutica do parto -foram oito manifestações favoráveis e duas contra. O sexto voto foi dado nesta quinta-feira (12) pelo vice-presidente da Corte, Carlos Ayres Britto. Seguiram o entendimento os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello. Já o presidente da Corte, Cézar Peluso, foi contrário à legalização da interrupção da gravidez neste caso. Até a proclamação do resultado, os ministros podem rever suas decisões.

O decano da Corte, ministro Celso de Mello, afirmou que a própria Igreja Católica legitimou interrupções de gravidez até o século 16, para mais tarde interpretar, sob o papa Pio IX, que existe vida desde a concepção. Ele disse ainda que foi um dos julgamentos mais importantes de sua carreira porque é uma decisão “que se mostra fiel ao espírito da nossa era”. Ele defendeu que o direito da mulher precede o do “feto sem vida”.

O presidente da Corte, Cézar Peluso, contrariou a maioria e considerou a decisão “o mais importante julgamento na história desta corte”, porque “tenta-se definir o alcance constitucional da concepção de vida”.

O julgamento foi suspenso ontem, com cinco ministros favoráveis à interrupção da gravidez nesses casos e apenas um contra, Ricardo Lewandoski. Vale lembrar que, caso se confirme a decisão favorável dos ministros sobre a interrupção da gravidez de anencéfalos, caberá a gestante decidir se leva a gestação adiante ou realiza a antecipação terapêutica do parto.

Para a maioria dos ministros, não há aborto no caso dos anencéfalos porque não há vida em potencial. Consequentemente, não há crime. O aborto é permitido apenas em casos de estupro e de risco à vida da gestante. Além de Ayres Britto, defenderam a tese o relator Marco Aurélio de Mello, Rosa Maria Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia, ontem.

Para o dissidente Lewandowski, a interrupção da gravidez de anencéfalos é aborto e não foi autorizada pelo Poder Legislativo, o que transformaria essa medida um crime. Entre os 11 ministros, apenas Dias Tóffoli não participa do julgamento, porque já tratou do caso quando era advogado-geral da União.

“[A interrupção da gravidez de anencéfalos] só é aborto em linguagem coloquial. Não é aborto em linguagem jurídica”, completou o vice-presidente da Corte. “Se todo aborto é uma interrupção de gravidez, nem toda interrupção de gravidez é um aborto para os fins penais”, disse o Ayres Britto.

 “O crime deixa de existir se o deliberado desfazimento da gestão não é impeditivo da transformação desse organismo em uma pessoa humana”, disse Ayres Britto. O ministro ainda comparou os anencéfalos a “uma crisálida que jamais chegará ao estágio de borboleta”, porque “jamais alçará voo”.

Gilmar Mendes também chamou a interrupção de fetos anencéfalos de aborto, mas avaliou, diferentemente de Lewandowski, que o caso “está compreendido entre as duas clausulas excludentes da ilicitude”, ou seja, os dois motivos pelos quais o aborto é legal: estupro ou risco de vida da mãe. O ministro considerou o risco de vida da mãe, por acreditar que a gravidez de anencéfalo é torturante, por trazer problemas psicológicos e físicos, como outros ministros citaram. Mendes afirmou também que a saúde do feto não é a questão central, já que no caso do aborto por estupro essa possibilidade nem é levada em conta.

“A falta de um modelo institucional adequado contribui para essa verdadeira tortura física e psíquica, causando danos talvez indeléveis, na vida dessas pessoas”, afirmou. Ele disse ainda que o Ministério da Saúde deveria divulgar normas para diagnósticos claros de anencefalia. E que o ideal seriam dois laudos médicos confirmando a anencefalia antes que haja a interrupção a gravidez. O ministro admitiu ainda que a decisão do Supremo não impede o Congresso de editar uma lei que trate do assunto.

Primeiro dia

Relator da ação no STF, Marco Aurélio afirmou que dogmas religiosos não podem guiar decisões estatais e fetos com ausência parcial ou total de cérebro não têm vida. A ministra Rosa Maria Weber admitiu que conceitos científicos são mutáveis e considerou que anencéfalos podem sobreviver por meses – o que médicos negam. Mas acabou votando a favor da interrupção da gravidez nesses casos "porque não está em jogo o direito do feto, mas sim da mulher".

Ao contrário do que defendem entidades religiosas, o relator afirmou que o feto anencéfalo não tem como viver. "Hoje é consensual no Brasil e no mundo que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem cérebro não tem vida", disse. "Aborto é crime contra a vida em potencial. No caso da anencefalia, a vida não é possível. O feto está juridicamente morto."

 

Lewandowski refutou a tese, levando em conta a vontade dos legisladores ao escreverem as condições em que o aborto é permitido. “Até agora os parlamentares decidiram manter intacta a lei penal, excluída as duas hipóteses [estupro e risco de vida da mãe]”, disse. O ministro afirmou que o Supremo só pode legislar de forma negativa, “para extirpar do texto jurídico o que contradita ao texto constitucional".

"Além de discutível do ponto de vista ético e jurídico, [a medida] abriria as portas para a interrupção de inúmeros embriões que sofrem ou venham a sofrer de problemas genéticos que levem ao encurtamento de suas vidas intra ou extrauterinas", afirmou.

Em uma antecipação do seu voto, o ministro Joaquim Barbosa acompanhou o relator e remeteu a decisões antigas que já tomou na corte.

Luiz Fux apelou à dignidade da vida da mãe. “É até desumano ler esses efeitos nocivos e deletérios para a saúde da mulher”, disse ele, referindo-se a problemas recorrentes nas mulheres após gestações desse tipo.

Desvincular a decisão o Supremo do aborto geral foi o centro do voto da ministra Cármen Lúcia. "O Supremo não está decidindo sobre o aborto. Decisões judiciais são oferecidas de acordo com objeto apresentado para a decisão", disse.

Na sessão de quarta-feira, grupos católicos se manifestaram diante do STF, incluindo um casal com uma filha vítima de acrania – problemas de formação do crânio. A ação em julgamento trata exclusivamente de casos de anencefalia (ausência da maior parte do cérebro).

Tramitação

A ação chegou ao STF em 2004, por sugestão da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). A entidade defende a antecipação do parto quando há má formação cerebral sem chance de longa sobrevivência para a criança. Para grupos religiosos, incluindo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o princípio mais importante é o de que a vida deve se encerrar apenas de forma natural.

A prática já foi autorizada pela Justiça em mais de 5.000 casos desde 1989, segundo especialistas. Em julho de 2004, uma liminar do ministro Marco Aurélio de Mello autorizou a interrupção, independentemente de ordem judicial específica. A decisão vigorou por 112 dias, período em que enfrentou forte pressão da Igreja Católica, e foi derrubada pelo plenário do STF em outubro do mesmo ano porque a maioria dos ministros considerou que não havia urgência para a sua concessão.

Anencefalia

A anencefalia causada por um defeito no fechamento do tubo neural (estrutura que dá origem ao cérebro e à medula espinhal). Ela pode surgir entre o 21º e o 26º dia de gestação. O diagnóstico é feito no pré-natal, a partir de 12 semanas de gestação, inicialmente por meio de ultrassonografia. Entidades médicas afirmam que o Brasil tem aproximadamente um caso para cada 700 bebês nascidos.

A grande maioria das crianças que nascem sem cérebro morrem instantes depois. Além de carregar no útero um bebê fadado a viver possivelmente por alguns minutos, as mães ainda têm de lidar com a burocracia de registrar o nascimento e o óbito no mesmo dia. O advogado da CNTS na ação, Luis Roberto Barroso, classifica a gravidez de anencéfalos de “tortura com a mãe”.

Os críticos da interrupção de gravidez de anencéfalos citam um caso de 2008 em Patrocínio Paulista, interior de São Paulo. Marcela de Jesus Ferreira sobreviveu um ano e oito meses porque a ausência de cérebro não era total. Marco Aurélio disse em seu pronunciamento que o caso não era de anencefalia, conforme confirmado por especialistas.

De acordo com uma pesquisa do instituto Datafolha, em 2004 havia 67% de paulistanos favoráveis a interromper a gravidez de bebês com anencefalia.

Entenda a anencefalia e a merocrania, outro tipo de malformação

  • Na anencefalia, há a ausência da maior parte do cérebro e da calota craniana (parte superior e arredondada do crânio). Na merocrania, uma condição extremamente rara, há um defeito menos acentuado da caixa craniana e o resquício do cérebro é coberto por uma membrana. Ambas as anomalias são fatais, mas, no segundo caso, a sobrevida costuma ser maior. O tronco cerebral, quando bem formado, garante ao feto funções vitais como respiração e batimentos cardíacos