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Médicos ainda não estão preparados para fazer diagnósticos como o de Vitória, diz especialista

Tatiana Pronin

Do UOL, em São Paulo

13/04/2012 07h00

O julgamento encerrado nesta quinta-feira pelo STF (Supremo Tribunal Federal) colocou em evidência a história da menina Vitória de Cristo, de 2 anos e 3 meses, levada pelos pais a Brasília com o objetivo de chamar a atenção de quem defende a interrupção da gravidez de anencéfalos.

Seus pais, Joana e Marcelo Croxato, ouviram dos médicos no início da gestação que a filha sofria de acrania (ausência do crânio), problema que poderia levar à anencefalia, uma vez que o líquido amniótico, em contato direto com os tecidos, vai corroendo o cérebro.

Embora tenha havido dificuldade em se confirmar a anencefalia no final da gestação por causa da posição em que o feto se encontrava, Joana conta que sua filha sempre foi tratada como anencéfala, e esse foi o termo presente em praticamente todos os prontuários e exames realizados.

“Acrania é diferente de anencefalia”, explica o especialista em medicina fetal Thomaz Gollop, professor de genética médica da Universidade de São Paulo (USP). Embora o primeiro diagnóstico possa evoluir para o segundo, como explicaram à mãe de Vitória, as duas condições são "medicamente definidas como diferentes". 

"Médicos diziam que eu tinha que abortar", diz mãe

Joana Croxato, que nos últimos dias foi questionada por uma série de médicos que disseram, por meio da imprensa, que sua filha não tem anencefalia. Ela alega que os profissionais é que deveriam ser questionados, já que sempre trataram o caso como anencefalia.

“Minha obstetra nunca me disse se era contra ou a favor do aborto, apenas decidiu que ia apoiar a minha decisão, mas vários médicos diziam que eu tinha que abortar”, conta.

Apesar de todos os prognósticos, ela teve uma gravidez saudável e a filha apresentou 7.8 no teste de Apgar (que avalia as funções vitais dos bebês). Aos 3 meses, fez uma cirurgia para fechar o crânio e, assim, evitar infecções. Aos 5 meses, foi levada para casa.

Apesar de documentos atestarem anencefalia, nenhum médico nunca soube precisar se Vitória sofre de acrania, anencefalia ou anencefalia incompleta, como chegaram a dizer. Nem mesmo depois de fazerem exames como tomografia e eletroencefalograma.

“Todos dizem que tudo o que ela faz são apenas reflexos, mas a gente sempre questionou isso porque ela sorri, faz careta quando toma injeção, tenta se comunicar, manifesta satisfação e incômodo”, descreve a mãe. Não é exagero. Nos vídeos que a família baixou no YouTube e estão no  blog em homenagem à menina é possível testemunhar tudo isso.

“Um médico chegou a me dizer que levar a gravidez adiante era um risco que não valia a pena, já que eu não levaria o ‘prêmio’ para casa”, lembra-se. “O ‘prêmio’ está em casa comigo até hoje”.
 

Ele explica que, em casos de acrania, pode restar a presença de partes rudimentares e desorganizadas do cérebro que dão uma sobrevida maior à criança após o nascimento. Na anencefalia propriamente dita, as crianças não costumam sobreviver mais do que dias ou semanas.

Gollop lembra que outro caso que teve destaque no debate há alguns anos, o de Marcela de Jesus Ferreira, que viveu por 1 ano e 8 meses em Patrocínio Paulista (SP), também foi diagnosticado incorretamente como anencefalia. “Ela tinha merocrania, uma condição extremamente rara”. Até hoje descrita em pouco mais de dez pacientes, a anomalia também envolve um resquício do cérebro superior que garante alguma sobrevida após o nascimento.

O especialista esclarece que casos como o de Vitória e de Marcela não seriam contemplados pela decisão do STF, relativa apenas à anencefalia. Mas a pergunta que fica é: os médicos têm condições de avaliar se um feto com malformação grave tem acrania, acrania com anencefalia ou merocrania?

 “Os médicos de hoje não têm domínio desses diagnósticos diferenciais”, admite Gollop. Ele acrescenta que até hoje não houve uma preocupação em determinar essas variações, já que todas essas patologias são consideradas gravíssimas e incompatíveis com a vida pelos profissionais. Agora, com esse debate, ele acredita que será importante treinar os profissionais para fazer essas diferenciações.

Morte cerebral

Como alguns ministros repetiram no julgamento, Gollop afirma que a anencefalia é comparável à morte cerebral. Ele chegou a mostrar exames de eletroencefalograma para comprovar como, em ambos os casos, só há linhas retas.

Para o neurologista Luiz Bacheschi, conselheiro do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo), a morte cerebral é uma figura de argumentação que ele próprio usaria no debate sobre anencefalia. Mas há um ponto importante a ser esclarecido: um paciente com morte cerebral não é classificado somente com base no eletroencefalograma. Já no caso dos anencéfalos, nem mesmo há como fazer exames tão detalhados no feto.

Para ele, a história de Vitória é um ponto fora da curva: “São casos excepcionais que não podem mudar uma conduta, nem fazer com que uma família perca a possibilidade de interromper a gravidez se assim desejar”.

O especialista em medicina fetal Sang Cha também concorda que casos como esse fogem totalmente do padrão. "Em 99,99% dos casos a criança morre nas primeiras horas depois do parto", diz. Para ele, não faria sentido correr riscos ("toda gravidez inspira cuidados") por causa de uma lei obsoleta.

 

Entenda a anencefalia e a merocrania, outro tipo de malformação

  • Arte UOL

    Na anencefalia, há a ausência da maior parte do cérebro e da calota craniana (parte superior e arredondada do crânio). Na merocrania, uma condição extremamente rara, há um defeito menos acentuado da caixa craniana e o resquício do cérebro é coberto por uma membrana. Ambas as anomalias são fatais, mas, no segundo caso, a sobrevida costuma ser maior. O tronco cerebral, quando bem formado, garante ao feto funções vitais como respiração e batimentos cardíacos