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Projeto financiado por Obama lança tecnologia inédita no estudo do cérebro

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Imagem: Shutterstock

Manuel Ansede

03/07/2015 06h00

O milionário projeto dos EUA para entender nossos 86 bilhões de neurônios começa a oferecer novas tecnologias para investigar o interior do cérebro como nunca antes

O ser humano conseguiu que uma sonda lançada da Terra viajasse 6 bilhões de quilômetros pelo espaço e pousasse sobre um cometa que sulca o sistema solar a 135 mil quilômetros por hora. Entretanto, esse mesmo ser humano é incapaz de entender o próprio cérebro. O órgão de 1,5 quilo que temos dentro da cabeça é um completo estranho. Não há ferramentas para estudá-lo. Contém 86 bilhões de neurônios, com trilhões de conexões entre eles. Com a tecnologia atual, é impossível abarcá-lo. É como tentar compreender o universo olhando pela janela para a Ursa Maior.

Mas essa situação de impotência poderia durar pouco. Em abril de 2013, o presidente americano, Barack Obama, anunciou o projeto Brain, uma iniciativa de US$ 4,5 bilhões até 2022 para "proporcionar aos cientistas as ferramentas necessárias para obter uma fotografia dinâmica do cérebro em ação e entender melhor como pensamos, aprendemos e lembramos".

O Brain começou em 1º de outubro de 2014, quando laboratórios, entre eles alguns dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA e da Agência de Pesquisa de Projetos Avançados de Defesa (Darpa, na sigla em inglês, o expoente máximo da ciência militar), começaram a receber dólares. Em seu primeiro ano fiscal, o Brain começa a oferecer os primeiros resultados.

Os neurocientistas já observam o cérebro como nunca haviam feito. Um deles é Charles Lieber, da Universidade Harvard. Sua equipe apresentou em junho na revista "Nature Nanotechnology" um dispositivo eletrônico muito flexível que pode ser implantado no cérebro de ratos com uma microsseringa. Essa técnica revolucionária permite cobrir o córtex cerebral com uma malha de eletrodos para registrar os sinais elétricos neurais.

"Esse dispositivo eletrônico injetável tem uma estrutura em forma de malha que, em escala maior, pareceria um mosquiteiro dos que colocamos nas janelas para que não entrem insetos. Como um mosquiteiro, que é muito flexível e através do qual se pode enxergar facilmente, nosso dispositivo eletrônico em forma de malha tem a superfície 90% aberta, é quase invisível dentro de um copo de água", explica Lieber.

"E, muito importante, é quase um milhão de vezes mais flexível que o mais flexível dos dispositivos eletrônicos estudados por outros pesquisadores. Sua flexibilidade e seus espaços fazem que nosso dispositivo se assemelhe muito ao tecido nervoso e, por isso, não causa reação no tecido cerebral quando implantado", diz.

As possíveis aplicações são formidáveis. E não só para entender o cérebro. O dispositivo também poderia servir "para estimular a atividade neural em regiões cerebrais profundas relevantes na doença de Parkinson", afirma Lieber.

O jovem Evan Macosko, da Escola de Medicina de Harvard, também está na primeira linha do projeto Brain. Cada célula de nosso cérebro guarda em seu interior uma cópia de todos os nossos genes. Mas cada célula só lê determinadas páginas desse manual de instruções. Uma célula de músculo usa os genes que lhe permitem contrair-se. Uma célula de rim emprega os que possibilitam que filtre o sangue.

"Ainda não entendemos muitas funções das células do cérebro. Se pudéssemos saber que genes estão usando, poderíamos entender melhor suas funções e como se classificam", afirma Macosko. Ou seja, ainda não sabemos quantos tipos de células há em nosso cérebro nem quantas há de cada tipo.

A equipe de Macosko apresentou em maio, na revista "Cell", a tecnologia Drop-seq, que identifica quais genes uma célula está usando, ou as dezenas de milhares de células em uma amostra de tecido. "Nosso próximo passo é utilizar a Drop-seq para criar um atlas de células do cérebro, uma lista minuciosa dos tipos de células que estão presentes em cada região cerebral", adianta. Um atlas semelhante abriria a porta para entender melhor as funções de diferentes zonas do cérebro, mas antes Macosko e seus colegas terão de afinar o tiro: por enquanto, Drop-seq só detecta 12% dos genes que cada célula utiliza.

O biólogo molecular Bryan Roth, da Universidade da Carolina do Norte, é outro cientista na vanguarda do Brain. Sua equipe desenha em seu laboratório receptores celulares, uma espécie de porteiros de discoteca das células. Esses guardiões sintéticos, conhecidos como Dreadd, podem ser colocados em células cerebrais para ativá-las e desativá-las mediante substâncias químicas teleguiadas.

"Basicamente, permitem-nos tomar o controle remoto das células cerebrais. Podemos ligá-las ou apagá-las para entender como funciona o cérebro", explica Roth. Seu enfoque é semelhante ao da optogenética, outra técnica na fronteira do conhecimento: os cientistas instalam genes de algas sensíveis à luz a bordo de vírus, que injetam em crânios de ratos ou macacos. Uma vez colocados nos neurônios dos animais, os genes produzem uma proteína que funciona como interruptor da célula, ativando-a ou desativando-a em função de feixes de luz laser lançados pelos pesquisadores.

O problema da optogenética é que exige invadir o crânio para introduzir a luz laser. E os Dreadd também têm um calcanhar-de-aquiles, segundo admite Roth: "Não nos permitem um controle rápido da atividade celular, são mais lentos que a optogenética".

O grupo do biólogo molecular acaba de apresentar um novo Dreadd, mais sofisticado, na revista especializada "Neuron". "As drogas que usamos não fazem nada aos animais além de apagar e acender os neurônios", afirma. Os Dreadd e o resto das tecnologias surgidas da iniciativa Brain poderão ser para o cérebro o que o telescópio foi para o universo.

Guerra fria entre a neurociência americana e a europeia

"Um milímetro cúbico de córtex cerebral do ser humano contém cerca de 27 mil neurônios e 1 bilhão de conexões. Isso em um volume semelhante ao de uma cabeça de alfinete. Estudar o cérebro é enormemente complexo e exige uma abordagem multidisciplinar", reflete Javier de Felipe, neurocientista do Instituto Cajal (CSIC), em Madri. Felipe é um dos diretores do polêmico Projeto Cérebro Humano, o equivalente europeu do Brain. Com apoio da Comissão Europeia, receberá 1 bilhão de euros em dez anos.

"A neurociência é uma guerra de guerrilhas, e estamos tentando nos unir em um grande exército para dar saltos na pesquisa do cérebro. Os grandes projetos como Brain e o Projeto Cérebro Humano valem mais do que seguir separadamente", declara. Entretanto, as iniciativas da UE e dos EUA não somaram forças. Em que projetos estão colaborando? "Pelo que sei, em nenhum", responde o neurobiólogo espanhol Rafael Yuste, catedrático da Universidade Columbia (EUA), que foi um ideólogo do Brain. "Não há colaborações de maneira oficial", confirma Felipe.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves