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Manobra na Unicamp tenta enviar US$ 1,6 milhão para universidade dos EUA

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Imagem: PR

Maurício Tuffani

Colaboração para o UOL, em São Paulo*

29/09/2016 06h00Atualizada em 29/09/2016 15h20

Uma faculdade da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) está tentando garantir o pagamento de cerca de US$ 1,64 milhão para a Universidade Princeton, dos EUA. O dinheiro viria de um contrato com concessionárias de energia lideradas pela AES Tietê, baseado na lei de apoio à inovação no setor elétrico. A lei obriga as empresas a investirem em pesquisas realizadas no Brasil, e seus recursos não podem ser usados para pagar instituições estrangeiras.

Dependendo da cotação do dólar desde o ano passado, o valor que se pretende repassar pode chegar à metade do total de R$ 13,98 milhões do contrato entre a AES Tietê, a Unicamp e outras três empresas de consultoria nacionais.

Denominado pela sigla Smart-Sen, o estudo prevê desenvolver em três anos a tecnologia e um sistema computacional para dar segurança ao fornecimento de energia elétrica com a inclusão das fontes eólicas, cujo comportamento é altamente instável. A Universidade Princeton já desenvolveu nos EUA e em outros países sistemas semelhantes para redes de energia de grande porte.

Localizada no Estado de Nova Jersey, Princeton é uma das universidades mais prestigiadas do mundo desde o início do século 20. O histórico de seu quadro regular de docentes registra 21 ganhadores do Prêmio Nobel, além de outros que já o haviam recebido antes de ingressar na instituição, como o físico Albert Einstein (1879-1955).

Sem a colaboração de Princeton, a Unicamp não tem capacidade para realizar o Smart-Sen, afirmou à reportagem o idealizador do projeto, engenheiro Paulo Sergio Franco Barbosa, ex-diretor da FEC (Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo). Ele propôs em setembro de 2015 o contrato com as concessionárias de energia já prevendo a participação e a remuneração da universidade norte-americana, onde ele realizou um pós-doutorado de 1999 a 2001.

Em outubro, na FEC, a diretora Marina Sangoi de Oliveira Ilha foi alertada sobre o Smart-Sen por três docentes. Em carta, os professores André Munhoz de Argollo Ferrão, Antonio Carlos Zuffo e Vinicius Fernando Arcaro apontaram as restrições da política de incentivos do setor elétrico para instituições estrangeiras. Apesar do aviso, a proposta foi aprovada no mesmo mês pela congregação da escola.

A proposta de contrato aprovada pela faculdade previa 36 parcelas mensais de R$ 133.333,33, a serem pagas pela AES Tietê para Princeton. O valor total de R$ 4,8 milhões correspondia a cerca de US$ 1,23 milhão no mês anterior, quando o projeto foi redigido por Barbosa. No final do ano, a universidade dos EUA acabou ficando fora do contrato quando a AES Tietê o cadastrou na Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), que supervisiona os projetos da lei 9.991, de 2000.

Valor para repasse aumenta

Tentando outro meio para pagar Princeton, Barbosa propôs em maio deste ano ao Departamento de Recursos Hídricos da faculdade um convênio diretamente com a universidade dos EUA. Dessa vez, além de ser proposto em dólares, o valor previsto foi 33% maior que o anterior, US$ 1.639.121,92, "limitado em R$ 6.556.487,68".

Esse “limite” se refere à cotação de R$ 4 por dólar, no maior patamar atingido pela moeda dos EUA no Brasil, que ocorreu em janeiro e fevereiro desde ano. O cálculo cambial se refere justamente ao início da execução do contrato com a AES Tietê, que não incluiu Princeton, como pretendia a proposta inicial.

A fonte desses recursos, segundo a nova proposta, é o mesmo contrato da Unicamp com a AES Tietê para o Smart-Sen, com recursos obtidos com base na mesma política de incentivo.

Ainda segundo Barbosa, além da colaboração da Funcamp (Fundação para o Desenvolvimento da Unicamp) e da Agência de Inovação da universidade, a minuta para o convênio teria sido redigida também com a ajuda de representantes do "departamento jurídico de Princeton".

Dois projetos, só que iguais

Como o Nordeste virou principal polo da energia eólica no Brasil - Aluisio Moreira/SEI - Aluisio Moreira/SEI
Região Nordeste é responsável por 85% da energia eólica produzida no Brasil
Imagem: Aluisio Moreira/SEI
Em meio às dificuldades decorrentes de ter gerado dois procedimentos administrativos para um único projeto de pesquisa, que é o Smart-Sen, Barbosa recorreu a uma sutileza que acabou comprometendo sua proposta. Em sua solicitação, ele se refere ao estudo previsto no contrato com a AES Tietê como "projeto de mesmo título, aprovado em todas as instâncias da Unicamp" em 2015, que fundamentou o contrato com a AES Tietê.

O pedido de Barbosa foi aprovado ainda em maio pelo conselho do Departamento de Recursos Hídricos. Assinado pelo professor e chefe Paulo Vatavuk, o parecer do órgão, em uma única página, reiterou sem esclarecimentos o valor proposto que foi um terço maior que o previsto no projeto inicial.

Em julho, também sob a presidência da diretora da FEC, a congregação da faculdade, que em outubro fora favorável ao "outro" Smart-Sen, votou pela aprovação da proposta de convênio.

Explicações do coordenador

A reportagem enviou perguntas ao coordenador do Smart-Sen por e-mail desde o dia 31 de agosto, e foi atendida por ele em entrevista gravada no dia 14 na assessoria de comunicação da Unicamp. O professor foi questionado sobre as restrições da lei dos incentivos do setor elétrico.

Também foi interrogado sobre as orientações do manual da própria Aneel que dizem: "A participação de pesquisadores estrangeiros, caso ocorra, deverá ser por meio de contratação direta pelas entidades executoras nacionais, sendo obrigatória a realização das atividades do projeto no Brasil".

Em resposta, Barbosa afirmou que teria sido aconselhado a desconsiderar essa diretriz da própria Aneel, em reunião com representantes da agência. E atribuiu esse conselho ao superintendente de Pesquisa e Desenvolvimento e Eficiência Energética da agência, engenheiro Maximo Luiz Pompermayer.

O que diz a Aneel

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Plano brasileiro é ampliar para 23% a fatia da fontes renováveis (como a eólica) na produção de energia
Imagem: PR
Procurado por seu e-mail corporativo e por intermédio da assessoria de imprensa da Aneel, Pompermeyer não se pronunciou sobre o suposto aconselhamento de não considerar a diretriz do manual acima citada, atribuído a ele por Barbosa. A agência também não comentou essa questão.

Questionada sobre a legalidade da tentativa do coordenador do Smart-Sen, com apoio de sua faculdade, de pagar Princeton com recursos do contrato da Unicamp com a AES Tietê, a Aneel afirmou em nota que nos seus registros do projeto "não há entidade executora estrangeira, não caracterizando a irregularidade suscitada", mas que há sanções previstas no caso de ser constatada alguma irregularidade.

A Aneel afirmou também em nota que a existência de cooperação ou convênio entre universidades brasileiras e estrangeiras, para intercâmbio de conhecimento e profissionais, não é regulada pelo programa de pesquisa e desenvolvimento da agência. E que a participação de algum pesquisador estrangeiro, no âmbito de um acordo de cooperação ou convênio, não é proibida ou descartada, desde que nos moldes estabelecidos na regulamentação.

Com base nesse esclarecimento, a reportagem apontou o fato de que o projeto de pesquisa Smart-Sen elaborado pelo professor Barbosa prevê inequivocamente a Universidade Princeton como instituição executora e a realização de pesquisas nos Estados Unidos. Além disso, tanto a proposta de contrato apresentada no ano passado, assim como a de convênio, neste ano, apontam como fonte de recursos o projeto de pesquisa custeado pela AES Tietê sob a supervisão da Aneel.

Além disso, as remunerações previstas para Princeton, tanto a inicial, do contrato vigente (R$ 4,8 milhões), como a posterior, do convênio proposto (R$ 6,56 milhões), são muito maiores que o valor estabelecido para a Unicamp especificamente para pesquisa (R$ 2 milhões).

A Aneel não se pronunciou sobre essas considerações da reportagem, que caracterizam a Universidade Princeton como entidade executora.

AES afirma legalidade do projeto

Apesar de pedidos desde o dia 31 de agosto, a AES Tietê não informou os valores já repassados por meio do contrato do Smart-Sen. A empresa afirmou que cabe à Aneel informar esses dados, mas a agência reguladora também não os forneceu.

Além dos R$ 4,8 milhões previstos inicialmente para Princeton e dos cerca de R$ 2 milhões para pesquisa na Unicamp, também foram definidos valores para as consultorias Venidera Pesquisa e Desenvolvimento (R$ 1,16 milhão), Cortes Assessoria e Consultoria (R$ 939,6 mil) e Sinerconsult Consultoria e Participações (R$ 550,8 mil) e também R$ 995 mil para viagens e taxas.

A soma total desses valores é de cerca de R$ 10,5 milhões. Mas a AES prevê também cerca de R$ 3,49 milhões adicionais para “variação cambial” e despesas operacionais das concessionárias participantes do projeto, totalizando exatos R$ 13.983.841,64 indicados em planilha da Aneel de 29 de abril deste ano.

“A participação de pesquisadores da Universidade Princeton foi formulada desde o início do desenho do projeto com o conhecimento da Aneel. As instituições são nacionais, conforme determina a lei 9991/2000: Unicamp e AES Tietê. O convênio de pesquisa com a Universidade Princeton foi estabelecido entre a instituição americana e a Unicamp e não com a AES Tietê. Não há impedimento legal sobre esta forma de parceria entre as universidades, segundo a Aneel”, afirmou em nota a empresa de energia.

A reportagem questionou o diretor-presidente da AES Tietê, engenheiro Ítalo Tadeu de Carvalho Freitas Filho, sobre possível conflito de interesse que poderia ter interferido em decisões, como a aceitação do Smart-Sen.

A pergunta se deveu ao fato de o dirigente da empresa ter sido orientando de mestrado na Unicamp do professor Paulo Sérgio Franco Barbosa. Sua banca examinadora teve a participação de outro participante do Smart-Sen, o professor Alberto Luiz Francato, e do engenheiro Fernando Amaral de Almeida Prado Júnior, sócio da Sinnerconsult Consultoria e Participações Ltda, uma das empresas contratadas.

Nem o presidente da AES Tietê nem a concessionária se manifestaram sobre esses questionamentos feitos reiteradamente desde 31 de agosto pela reportagem, que se também colocou à disposição para apreciar considerações sobre esse e quaisquer outros aspectos que o dirigente e a empresa quisessem apresentar.

O presidente da AES Tietê já tinha sido questionado anteriormente sobre possível conflito de interesse na reportagem do blog Direto da Ciência publicada em agosto, "Dinheiro para pesquisa da Unicamp foi pago para empresa de professores", que revelou outro projeto dos professores Barbosa e Francato contratado pela concessionária.

Unicamp desmente AES Tietê e coordenador

Questionada sobre a afirmação da AES Tietê de que o convênio com Princeton foi aprovado pelas duas universidades, a Unicamp afirmou em nota que as propostas sobre o projeto Smart-Sen foram aprovadas no aspecto de mérito acadêmico, mas ainda se encontram em análise sobre seus aspectos jurídicos.

A Unicamp afirmou também que o Smart-Sen não foi apreciado pelo Conselho Universitário, órgão máximo da instituição. No entanto, o colegiado já aprovou com efeito retroativo, e após mais de um ano, outros projetos propostos pelos professores Barbosa e Francato, entre eles o citado na reportagem que menciona pagamento pela AES Tietê para empresa dos dois docentes.

Desse modo, a nota da universidade desmentiu a afirmação do professor Paulo Barbosa de que o contrato com a AES Tietê com base no projeto Smart-Sen teria sido “aprovado em todas as instâncias da Unicamp”.

A Unicamp afirmou ainda que nenhum valor do contrato com a AES Tietê para o projeto Smart-Sen foi repassado para Princeton.

Procuradas por e-mail desde o dia 20, as empresas de consultoria Venidera Pesquisa e Desenvolvimento, Cortes Assessoria e Consultoria e Sinerconsult Consultoria e Participações não se pronunciaram sobre seus nomes serem citados na presente reportagem sobre o projeto Smart-Sen, para o qual foram contratadas pela AES Tietê.

A diretora da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, Marina Sangoi de Oliveira Ilha, e o chefe do Departamento de Recursos Hídricos, Paulo Vatavuk, e Alberto Luiz Francato não responderam aos questionamentos encaminhados pela reportagem, especialmente sobre sua atuação na aprovação de propostas do projeto Smart-Sen.

Os professores André Munhoz de Argollo Ferrão, Antonio Carlos Zuffo e Vinicius Fernando Arcaro, da mesma faculdade, não quiseram se pronunciar sobre seus questionamentos a diversas instâncias da Unicamp sobre a legalidade do Smart-Sen, alegando que esse e outros projetos da instituição estão sendo investigados em sindicâncias ou pelo Ministério Público.

O professor Warren Powell, da Universidade Princeton, ressaltou a importância do Smart-Sen para a eficiência e a segurança do sistema elétrico brasileiro. Ele também afirmou que o convênio com a Unicamp não foi ainda aprovado pelas duas instituições. E se recusou comentar os aspectos legais sobre o projeto.

Questionada pela reportagem, a Universidade Princeton não se pronunciou sobre o Smart-Sen, inclusive sobre a afirmação do professor Paulo Barbosa de que teve colaboração do seu departamento jurídico para elaborar sua proposta de convênio.

* Maurício Tuffani é editor do blog Direto da Ciência