Como morte de britânica de 14 anos reacendeu polêmica sobre congelar corpos

Gabriel Francisco Ribeiro

Do UOL, em São Paulo

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    Criônica trabalha com preservação de corpo inteiro ou cérebro humano em baixíssimas temperaturas

    Criônica trabalha com preservação de corpo inteiro ou cérebro humano em baixíssimas temperaturas

Seja pela lenda urbana do congelamento de Walt Disney após sua morte –informação falsa, segundo sua filha– seja por qualquer outra razão, você já deve ter ouvido falar da ideia de congelar um corpo para que no futuro a pessoa seja ressuscitada. Conhecida como criônica, a prática é um tabu na comunidade científica. Agora, a polêmica foi reativada por um caso no Reino Unido.

A morte no início de novembro de uma jovem de 14 anos que tinha um câncer incurável deu início a uma disputa nos tribunais, já que a mãe queria cumprir o desejo da filha de ter seu corpo congelado em busca de uma cura futura. A alta corte britânica deu razão à matriarca –o pai, divorciado, era contra a ideia.

Eu só tenho 14 anos e não quero morrer, mas sei que irei. Acho que ser criopreservada me dá uma chance de ser curada e acordada, mesmo que seja daqui a centenas de anos. Eu quero viver mais e acho que no futuro podem achar uma cura para meu câncer. Quero ter esta chance. É o meu desejo" JS, em carta à corte antes de morrer, segundo o jornal The Guardian

 

A decisão, contudo, preocupou alguns dos principais cientistas britânicos. Pesquisadores temem que a decisão da corte gere uma onda de interesse maior pela criopreservação, que é uma técnica sem garantias de sucesso e que se baseia apenas na esperança de uma hipotética tecnologia avançada no futuro.

A criopreservação

Conhecido como criônica, o processo surgido na década de 60 investe em preservação de corpos em baixíssimas temperaturas com nitrogênio líquido na esperança de que no futuro haja uma cura para a causa de suas doenças. Mas nem só de esperança o processo depende: serão necessárias técnicas para reviver as pessoas que passarão pelo congelamento, algo que estamos longe de alcançar.

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Cientistas contestam a difusão da prática da criônica

"A ideia é você interromper todos os processos de degradação celular. Mas não existe uma tecnologia que garanta o retorno que viabilize a vida. Quando você faz um congelamento, você pode preservar a integridade celular, mas isso se faz com células separadas, vide congelar sêmen e óvulo. Agora um corpo inteiro? Hoje não temos essa garantia", explica Mirna Barros, chefe do departamento de morfologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

De fato, até mesmo as empresas que fazem a criopreservação – existem três nos Estados Unidos e uma na Rússia – evitam dar qualquer garantia do processo. Tudo o que elas prometem é armazenar e manter os corpos até que a tecnologia possa reanimá-los. A técnica não é nem um pouco barata, por sinal: a mãe da adolescente britânica pagou 37 mil libras (R$ 156 mil), segundo o The Guardian.

"A criônica é um procedimento experimental que preserva um ser humano utilizando o melhor da tecnologia para salvar sua vida. Acreditamos que a tecnologia médica irá avançar mais nas próximas décadas do que nos últimos vários séculos, permitindo curar danos a nível celular e molecular e restaurar toda a saúde mental e física", diz declaração no site da Alcor, empresa norte-americana que faz a técnica e afirma ser não-lucrativa

Os entraves: tecnologia, custo e ética

Os críticos da propagação da criopreservação enxergam a "ética" do experimento como a principal preocupação. Ao Guardian, houve cientista britânico que chamou a técnica de "ridícula" e muitos destacaram que "não há evidência" de que funcione. Mirna Barros cita três entraves para o processo.

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Empresas que fazem o procedimento não dão garantias de sucesso da tentativa

"Há um ponto tecnológico, mas se você tem algo absolutamente confiável de criopreservação e recuperação, os problemas estarão resolvidos. Outro seria o custo: se o custo é absurdo, a técnica fica inviável. E paralelamente a isso há a discussão ética de como vamos usar esta tecnologia: para quem e em que circunstâncias ela vai servir para a humanidade?", opina.

O que é a morte?

Entre os argumentos de quem defende a técnica, está um que revive o passado. Andres Samberg, do Instituto Futuro da Humanidade da Universidade de Oxford, conta que quem quer ser criopreservado é um "fugitivo do passado, pessoas que não podem sobreviver aqui". Ele recorda, em entrevista ao Guardian, a mudança do que é considerado morte ao longo dos anos.

"Na Idade Média, as pessoas pensavam que se você não estivesse respirando, estaria morto. Agora nós sabemos como fazer massagem cardiorrespiratória. No futuro, pode ser que só porque seu coração não está batendo não signifique que você esteja morto", alega.

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Personagem Austin Powers foi criopreservado em um de seus filmes

Na opinião de Barros, esta ideia entra mais uma vez em um conflito ético muito semelhante ao que envolve o aborto: quando nós estamos realmente mortos?

"É a mesma discussão de quando se inicia a vida. É uma discussão sem fim. Mas é uma discussão científica baseada na ética. Ela baliza futuros comportamentos de juízes, professores e etc. Quando a gente entra neste patamar, é uma discussão ética que pensa até além da tecnologia", afirma.

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