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Tomou e pronto: vírus mutante pode gerar a vacina universal contra gripe

Já imaginou uma vacina que protegeria definitivamente contra todas as epidemias de gripe? - Shutterstock
Já imaginou uma vacina que protegeria definitivamente contra todas as epidemias de gripe? Imagem: Shutterstock

Fernando Cymbaluk e Larissa Baroni

Do UOL, em São Paulo

18/01/2018 17h00

A cada ano uma nova receita da vacina contra a gripe precisa ser desenvolvida para combater a variedade sazonal do vírus. Mas a necessidade dessa constante adaptação pode estar com os dias contados. Isso porque a ciência está cada vez mais próxima de desenvolver uma vacina universal, que protege contra diferentes tipos e mutações do influenza, o causador da gripe.

Um passo importante foi dado por um grupo de cientistas dos EUA e da China. Eles conseguiram desenvolver um vírus da gripe mutante e atenuado, que funcionou bem como vacina em testes feitos com ratos e furões e garantiu proteção contra duas variações do vírus da gripe ao mesmo tempo. Se essa vacina se mostrar eficaz contra outras variedades do vírus, poderemos ter no futuro uma única vacina contra a doença -- dessas que tomamos uma vez, e pronto. O resultado da pesquisa foi divulgado nesta quinta-feira (18) pela revista científica Science.

Desenvolver vacinas é uma tarefa bastante complexa. E ainda mais quando se trata de um vírus que sofre mutações em velocidades que deixam a ciência comendo poeira. No organismo, o influenza age de forma ardilosa, desarmando uma ferramenta de defesa do corpo que é acionada quando há uma invasão por algum ser estranho. Assim, não atacamos o inimigo, e ele nos causa os conhecidos sintomas de febre, tosse, catarro e dores que pode evoluir para quadros graves e até ser fatal.

Outra característica do vírus é a grande diversidade genética. Existem três tipos de vírus – A, B e C --, e uma diversidade de subtipos. Atualmente, as vacinas existentes mais usadas possuem pedacinhos inativados de cada subtipo. Por exemplo, a vacina trivalente, oferecida no Brasil pela rede pública de saúde quando há epidemias, possui pedacinhos que protegem contra o H1N1 e o H3N2 -- dois subtipos do vírus do tipo A – e contra um subtipo do tipo B.

E é claro que proteger a população contra toda essa variedade de vírus que muda rapidamente significa altos gastos

Tanta reformulação da vacina é custosa. Demanda logística e mudança de receita com grande frequência

Nancy Bellei, infectologista da Unifesp (Universidade Federal Paulista) e consultora em influenza 

A problemática não para por aí. Há ainda uma grande preocupação entre os cientistas de que o poderoso e mortífero vírus da gripe aviária, como os subtipos H1 e H7, que atualmente é transmitido apenas de aves para humanos, sofra mutações que o tornem transmissíveis entre as pessoas. "O que se acredita é que novos subtipos vão surgir. E a vacina precisaria ter 9, 10 ou mais pedacinhos para proteger todo mundo", diz Antonio Carlos Pignatari, infectologista do Hospital 9 de Julho.

Gripe 2 - William Hong /Reuters - William Hong /Reuters
Chinês cobre o rosto diante de sua criação de frangos, em Yuxin, Zhejiang, para se prevenir do vírus H7N9
Imagem: William Hong /Reuters

A OMS (Organização Mundial da Saúde) tinha como objetivo desenvolver uma vacina universal contra a gripe até 2020. Nos encontros internacionais sobre o tema, batalhões de cientistas apresentam diferentes estratégias para tentar chegar lá. Mas quem trabalha na área já descarta alcançar o feito na data almejada. 

A pesquisa do grupo liderado pelo chinês Yushen Du, da Universidade da Califórnia, revigora as esperanças. Em vez de utilizar pedacinhos do vírus, a imunização ocorre com um vírus atenuado – no caso, o vírus mutante criado em laboratório. O sucesso da pesquisa está no fato desse vírus mutante não provocar o desenvolvimento da doença nas cobaias, não causar efeitos adversos e garantir boa proteção contra o H1N1 e o H3N2. 

"O importante a notar é que o vírus mutante levou a uma resposta boa, geral e sem efeito colateral", diz Pignatari. "Ele [vírus mutante] foi capaz de proteger não só contra um ponto de mutação, mas contra subtipos diferentes, seguimentos gênicos inteirinhos", completa Bellei.

Contudo, os especialistas atentam para o fato das vacinas testadas em animais se comportarem de forma diferente em humanos. "E dizer que é universal necessitaria de mais testes. Não testou H5, H7, por exemplo", afirma Bellei. Os pesquisadores brasileiros consultados pela reportagem não participaram da pesquisa. 

Gripe 3 - CDC - CDC
Estrutura do vírus H1N1, causador da gripe de tipo A, que está associada a epidemias e pandemias
Imagem: CDC

O segredo do vírus mutante

A ideia é simples. Uma das propriedades do vírus influenza, causador da gripe, é a de bloquear a produção de uma proteína pelo organismo dos hospedeiros (como os ratos, furões e nós, os humanos) que está ligada à defesa imunológica. Essa proteína é chamada de interferon.

"É uma resposta inata a produção de interferon quando um corpo estranho invade nosso organismo. O vírus da gripe inibe nossa produção. Quando ela se inicia, ele fez o estrago, foi para o pulmão, etc.", diz Bellei.

O vírus mutante feito pelos cientistas não inibe a produção de interferon, permitindo que o corpo ataque o invasor. Feito de forma atenuada, ou seja, sem o poder de causar doença no hospedeiro ou leva-lo à morte, a criatura mutante pode funcionar como uma vacina. Com ela, o organismo aprende a se defender contra o influenza. E ataca o vírus da gripe quando exposto a ele de verdade. 

"Se funcionar [uma vacina feita com o vírus mutante atenuado], de cara vamos produzir interferon, ganharemos resposta imediata, impedindo o vírus de se espalhar", diz a especialista.

Gripe 4 - Reprodução/Huffington Post - Reprodução/Huffington Post
Cientistas querem chegar a vacina que garantiria proteção contra todos os tipos e mutações do vírus da gripe
Imagem: Reprodução/Huffington Post

Trabalho de proporções "asiáticas"

Para chegarem a um vírus atenuado, que não provoca a morte do organismo e que ainda assim protege de forma efetiva contra diferentes tipos do vírus da gripe, os cientistas tiveram um trabalho enorme. "Um trabalho asiático", na definição de Bellei, fazendo referência às proporções enormes do continente e ao fato de a maioria dos pesquisadores serem de universidades da China, país que investe de forma intensa em pesquisa científica.

Basicamente, os cientistas sequenciaram o DNA inteiro do vírus de influenza A e começaram a procurar pontos que estivessem relacionados ao bloqueio da produção de interferon pelo organismo do hospedeiro. Eles encontraram oito pontos, os quais foram alterados, dando origem a um vírus mutante que não interferia na produção da proteína que promove a defesa imunológica do organismo.

Na sequência, os pesquisadores testaram se esse vírus mutante produzia respostas no organismo dos hospedeiros que não seriam desejáveis -- como a exacerbação da produção de ocitocina, o que pode levar à morte. Além disso, eles verificaram se o vírus criado em laboratório conseguia se replicar de forma não tão intensa a ponto de causar a doença, mas suficiente para acionar a produção de anticorpos.

Por fim, eles colocaram o vírus mutante para desafiar o vírus real. As arenas escolhidas foram os organismos de ratos e furões. Após serem expostos ao novo vírus, os animais foram infectados pelos vírus H1N1 e H3N2 (subtipos da gripe tipo A). Após alguns dias, foi verificado que os ratos e furões ficaram protegidos contra os vírus da gripe e não sofreram de efeitos adversos, como perda de peso e pelos.

"Foi necessário uma enorme quantidade de testes até chegarem em um vírus que em laboratório mostrou ter boa resposta e proteger contra diferentes subtipos", diz Bellei. "Esse estudo mostra como os achados científicos necessitam de muito trabalho e o quanto é importante o investimento em pesquisa básica", acrescenta Pignatari.