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A diferença entre falsa memória e a mentira descarada

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Imagem: Thinkstock

Tara Parker Pope

Do The New York Times

17/02/2015 06h00

Quanto a memória humana é confiável? A maioria de nós acredita que nossa memória é como uma filmadora, capturando um registro exato que pode ser revisto posteriormente. Na verdade, nossa memória pode nos enganar – e isso ocorre com frequência. Diversos estudos científicos mostram que as memórias podem sumir, mudar e ser distorcidas ao longo do tempo. As lembranças reais podem ser alteradas inconscientemente e embelezadas, mas fatos novos inteiramente falsos podem ser incorporados ao nosso banco de memória, entranhados tão profundamente que nos convencemos que eles são reais e aconteceram de verdade.

A falibilidade e a maleabilidade da memória humana ocupam o centro de uma polêmica nos Estados Unidos envolvendo Brian Williams, âncora do "NBC Nightly News". Em 2003, Williams estaria voando atrás de um helicóptero que foi atingido por um projétil de um lança-granadas. Contudo, ao longo do tempo, a história mudou, a ponto de Williams contar que ele estava no helicóptero bombardeado.

Willians foi chamado de mentiroso por enfeitar seu papel no evento, e críticos afirmaram que como apresentador de noticiário ele deveria manter um padrão mais elevado. Após se desculpar, Williams se afastou temporariamente do noticiário noturno.

Contudo, especialistas em memória veem o assunto de outra forma, observando que a história bem documentada, contada de forma diferente muitas vezes por Willians, oferece um estudo de caso atraente sobre como as lembranças podem mudar e se modificar dramaticamente ao longo do tempo.

"Temos todas essas pessoas dizendo que o cara é um mentiroso, acusando-o de engodo deliberado sem levar em consideração uma hipótese alternativa – que ele desenvolveu uma memória falsa", disse Elizabeth Loftus, renomada pesquisadora da memória e professora de Direito e Ciência Cognitiva na Universidade da Califórnia, campus de Irvine. "É um momento que ensina, uma chance de capturar a informação existente sobre a natureza maleável da memória."

Existem diversos exemplos de pessoas famosas que lembraram eventos de forma errônea. Hillary Rodham Clinton afirmou ter ficado sob o fogo de franco-atiradores na Bósnia, para se desmentir mais tarde. Mitt Romney dizia se recordar de uma festa de aniversário de Detroit ocorrida nove meses antes de ter nascido.

"Outros famosos contaram coisas que não podiam ser verdade e, aparentemente, eles só estavam se lembrando de forma errada", afirmou Christopher Chabris, autor de um livro sobre o tema, e professor adjunto de Psicologia da Faculdade Union, em Schenectady, Nova York. "Acho que muitas pessoas não avaliam a extensão com que memórias falsas podem acontecer mesmo quando temos extrema confiança na lembrança."

As memórias não vivem como eventos completos e únicos em um só lugar do cérebro. Ao contrário, elas existem como fragmentos de informação, armazenadas em partes diferentes da nossa mente. Ao longo do tempo, à medida que as recordações são recuperadas, ou quando vemos imagens no noticiário sobre o evento ou conversamos com outras pessoas, a história pode mudar conforme a mente recombina essas porções de informação e as arquiva erroneamente como lembranças. Este processo cria essencialmente uma nova versão do evento que, para o narrador, parece ser verdade.

"É como brincar de telefone sem fio", explicou Chabris. "Você sussurra uma mensagem e, quando ela chega à última criança, é uma história completamente diferente do que quando começou."

A literatura científica está cheia de estudos fascinantes de pesquisadores plantando memórias criadas, variando do simples ao bizarro – desde ser atacado por um animal cruel, por exemplo, a testemunhar uma possessão demoníaca. Um estudo seminal de Loftus plantou memórias falsas de ser uma criança perdida assustada num shopping center. Após ler um texto sobre ter se perdido, um a cada quatro pacientes passaram a acreditar que a falsa memória realmente aconteceu com eles.

Outro estudo constatou que pesquisadores poderiam influenciar como uma testemunha ocular lembrava uma batida de carro dependendo de qual verbo usassem na pergunta – esmagou, colidiu, chocou-se, bateu ou encostaram. Os participantes que foram questionados sobre a velocidade dos carros quando eles se "esmagaram" pensavam que os automóveis se moviam mais rapidamente do que a quem se perguntou a velocidade deles quando "colidiram".

Steven J. Frenda, pesquisador de pós-doutorado da Nova Escola para Pesquisa Social, em Nova York, utilizou exercícios escritos para induzir memórias falsas sobre o resgate de um gato em uma árvore. Estudantes foram divididos aleatoriamente em grupos diferentes e convidados a participar de um exercício escrito. Um grupo deveria inventar uma história sobre o gato resgatado; o grupo de controle recebeu um assunto trivial. Posteriormente, os dois grupos foram indagados se já haviam resgatado um gato. Os estudantes que haviam escrito anteriormente sobre o gato tinham o dobro de possibilidade de relatar o evento como lembrança real do que os do grupo de controle.

"A memória é um processo reconstrutivo, e estávamos nos baseando em fontes múltiplas de informação", disse Frenda. "Uma memória falsa pode surgir quando atribuímos erroneamente uma informação como memória. Pode ter sido algo que se exagerou no passado ou outra coisa que se vivenciou e que podemos passar a considerar como verdadeira."