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Oficial de proteção planetária: conheça a "mulher in black" que bota ordem em Marte

No seu primeiro dia de trabalho, Catharine A. Conley realmente ganhou óculos de sol - Paul Alers/Nasa
No seu primeiro dia de trabalho, Catharine A. Conley realmente ganhou óculos de sol Imagem: Paul Alers/Nasa

Kenneth Chang

15/10/2015 06h00

Na Nasa, o título do cargo de Catharine A. Conley é imponente: oficial de proteção planetária. Dá para imaginar o Will Smith e o Tommy Lee Jones de óculos escuros nos filmes "Homens de Preto". E, na verdade, no seu primeiro dia de trabalho há nove anos, ela realmente ganhou um par de óculos de sol.

Porém, não estava preocupada com invasões extraterrestres. O trabalho de Catharine não é proteger a Terra dos alienígenas, mas proteger os outros planetas dos terráqueos. Em especial o planeta Marte.

"Se quisermos buscar vida em Marte, seria uma péssima ideia levar formas de vida terrestres para lá", afirmou ela.

Com notícias na semana passada de que os cientistas identificaram áreas com água corrente na superfície marciana — algumas possivelmente ao alcance da sonda Curiosity, da Nasa — essa preocupação se tornou ainda mais imediata.

Milhares, milhões e até bilhões de bactérias viajam pelo sistema solar nas espaçonaves. A terra tem invadido Marte desde novembro de 1971, quando o veículo Soviet Mars 2 caiu ao tentar pousar no planeta. Certamente existe algum tipo de vida em Marte hoje — os micróbios que pegaram carona vindos da Terra. Mesmo no ambiente agressivo do planeta vermelho — frio, seco, bombardeado por luz ultravioleta — são necessários muitos anos para que elas morram.

O temor é que alguns desses organismos não só sobrevivam, como se desenvolvam.

Por conta dos micróbios residuais, as sondas Opportunity e Curiosity da Nasa não podem visitar as "regiões especiais" — locais onde as bactérias da Terra se sentiriam em casa. (A próxima sonda marciana, a InSight, que será lançada em março do ano que vem, e o próximo veículo, que será lançado em 2020, também não serão esterilizados. Ao pensar nos locais para o pouso da sonda de 2020, a Nasa também eliminou as zonas especiais.)

A ideia é que mesmo que alguns micróbios terrestres tenham sido levados para a superfície inóspita de Marte, eles devem se manter dormentes para não haver proliferação.

Até o momento, Marte continua limpinho
Catharine A. Conley

As áreas consideradas especiais incluem locais que ficam escurecidos durante parte do tempo, conhecidos como Linhas de Declive Recorrentes (RSL, na sigla em inglês), nas laterais de crateras, cânions e montanhas. Os cientistas afirmaram na semana passada que esses espaços são gerados pela passagem de água líquida, uma das condições essenciais para a vida.

A cautela também representa uma dificuldade. Neste momento, a Nasa não pode explorar os locais com o maior potencial de vida — algo que pode ser decisivo para a Curiosity, que está lentamente subindo a montanha da Cratera Gale.

Gale foi escolhida como o destino da Curiosity em parte porque era o local "mais seco e improvável para a presença de regiões especiais", afirmou Catharine. Mas algumas RSLs foram encontradas inesperadamente no entorno da montanha e a poucos quilômetros do caminho planejado pela Curiosity.

James L. Green, diretor da divisão de ciências planetárias da Nasa, não eliminou a possibilidade de que a Curiosity vá até um desses locais.

Se as linhas forem de fato RSLs, afirmou Green, a Nasa poderá então avaliar quantos micróbios terrestres poderiam ter sobrevivido nas áreas externas da Curiosity.

"Isso determinaria se teríamos a aprovação da proteção planetária e até que ponto poderíamos ir", afirmou Green.

Catharine é a pessoa responsável por essa decisão. Ela afirmou que durante o lançamento existiam provavelmente de 20 mil a 40 mil esporos bacterianos resistentes ao calor na Curiosity, e talvez de 100 a mil vezes mais micróbios não resistentes. Muitos deles teriam morrido no vácuo do espaço. A intensa radiação ultravioleta da superfície marciana teria matado boa parte dos demais, mas não todos, e uma gotinha poderia cair no chão quando a Curiosity começar a realizar seus trabalhos científicos.

"Estamos em fase de discussão. Depende de quais são os resultados dos cálculos", afirmou Catharine.

Essa não é uma mania chata da Nasa, mas fruto de um acordo internacional. O Tratado do Espaço Sideral firmado em 1967 diz que os países devem tomar cuidado quando exploram outros planetas "para evitar contaminações nocivas".

O Comitê de Pesquisa Espacial, parte do Conselho Espacial de Ciências, desenvolve políticas de proteção planetária que Catharine é responsável por aplicar. Na maior parte das missões, como a sonda Cassini, enviada à órbita de Saturno, as exigências são bastante simples — não se chocar com qualquer corpo celeste capaz de abrigar vida e, ao final do trabalho, destruir a espaçonave. (A Cassini fará um mergulho suicida em Saturno, onde o calor e a pressão vão destruí-la junto com todos os micróbios restantes.)

Cuidados similares serão realizados durante o estudo de Europa, uma lua de Júpiter, e Encélado, lua de Saturno, que teriam oceanos de água líquida sob a superfície. Entretanto, ainda se passarão anos até que qualquer sonda pouse lá. Por hora, a principal preocupação é Marte.

"Estamos percorrendo novos caminhos", afirmou John M. Grunsfeld, administrador associado de ciências da Nasa, sobre as conversas em relação à Curiosity.

A questão da proteção planetária passou de cuidados preventivos para uma consideração muito real e imediata
Grunsfeld

No caso das duas sondas Viking enviadas em 1976 — a primeira e, até o momento, única tentativa da Nasa de detectar vida em outro planeta — a agência tomou precauções extraordinárias para esterilizar as espaçonaves, primeiro limpando-as até que restassem apenas 300 bactérias resistentes ao calor a cada metro quadrado. Em seguida, as sondas foram desmontadas e submetidas por vários dias ao calor, reduzindo o número de esporos em 10 mil vezes.

Mas boa parte dos dados colhidos pela Viking indicavam que Marte é um planeta sem vida. Desde então, a Nasa continuou a limpar as sondas com o mesmo afinco — "melhor do que equipamentos cirúrgicos", afirmou Catharine — mas deixou de submete-las ao calor. A esterilização completa acrescentaria um custo de US$ 100 milhões à missão.

Portanto, a Nasa evitou as regiões especiais, que incluem qualquer local com gelo a até um metro da superfície. (A única exceção é a sonda Phoenix, que cavou o gelo nas regiões polares. O braço — mas apenas o braço — foi esterilizado segundo os padrões da sonda Viking.)

Os sais conhecidos como percloratos, que diminuem a temperatura de congelamento da água nas RSLs para mantê-la líquida, podem ser consumidos por alguns micróbios terrestres.

O ambiente em Marte é basicamente um enorme prato de comida para certos organismos terrestres
Conley

Os primeiros colonizadores da Terra poderiam ser algumas das plantas mais simples de todas.

"Eu me preocupo com o líquen. Tenho medo de qualquer coisa que cresça no telhado de casa. São organismos que basicamente comem rochas e respiram o sol. E há rochas e sol de sobra em Marte", disse ela.

Catharine entrou inadvertidamente para o campo da proteção planetária após a perda do ônibus espacial Columbia, que carregava um de seus experimentos envolvendo nematoides, após a explosão durante o retorno à Terra em 2003. O experimento foi recuperado em meio aos destroços e os vermes continuavam vivos.

"Animais pluricelulares, pelo menos os pequenos, são capazes de sobreviver a uma reentrada descontrolada na atmosfera desde que não fique quente demais", afirmou ela.

Da mesma forma, o interior dos meteoros continua quente quando eles entram na atmosfera e as descobertas apontam para a ideia de que a vida possa ter ido e vindo entre Marte e a Terra em rochas atiradas pelo espaço por impactos de meteoros.

Para alguns críticos da Nasa, as preocupações da proteção planetária são um peso caro que atrapalham o estudo do sistema solar. Para que tanta cautela se, daqui poucas décadas, astronautas carregando incontáveis micróbios terrestres vão chegar para a colonizar Marte?

Como a compreensão de que Marte talvez não seja um planeta tão desolado quanto se imaginava, "nós temos de ser cuidadosos", afirmou Grunsfeld. "Temos que prestar atenção no que fazemos, porque já pode haver vida em Marte."