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Como os sonhos podem ter papel terapêutico no fim da vida de uma pessoa

Jonathon Rosen/The New York Times
Imagem: Jonathon Rosen/The New York Times

Jan Hoffman

Em Lancaster, New York (EUA)

10/02/2016 06h00

Uma noite no final do outono, Lucien Majors, de 84 anos, sentou-se à mesa da cozinha ao lado de sua mulher, Jan, e descrevia um sonho recente. Majors tinha um câncer terminal na bexiga e falência renal. Enquanto falava com um médico do Lar Buffalo, estava lúcido, mas vacilante.

No sonho, disse Majors, ele viajava em um carro com sua grande amiga, Carmen. Seus três filhos, adolescentes, estavam no banco de trás brincando.

"Dirigíamos pela rua Clinton", conta ele, seus olhos de um azul pálido revelavam seu prazer ao pensar na viagem de carro.

"Estávamos procurando pelo Grand Canyon." E então o vimos. "Falamos sobre como era incrível, porque ali estava ele --– por todo esse tempo, o Grand Canyon ficava no final da Rua Clinton!"

Majors não falava com Carmen há mais de 20 anos. Seus filhos tinham entre 50 e tantos e 60 e poucos anos.

"Por que você acha que seus filhos estavam no carro?", perguntou o doutor Christopher W. Kerr, médico de cuidados paliativos do Lar Buffalo, que pesquisa o papel terapêutico dos sonhos e de visões de pacientes no final da vida.

"Meus filhos são a maior realização de minha vida", afirmou Majors.

Ele morreu três semanas depois.

Por milhares de anos, os sonhos e visões daqueles que estão morrendo têm cativado culturas que lhes atribuem algo de sagrado. Antropólogos, teólogos e sociólogos estudaram esses fenômenos no leito de morte. Eles aparecem em escritas medievais e pinturas renascentistas, em trabalhos de Shakespeare e novelas americanas e britânicas do século 19, particularmente as escritas por Dickens. Um dos mais famosos momentos do cinema é o murmúrio misterioso no leito de morte em "Cidadão Kane": "Rosebud!".

Mesmo a lei reverencia as palavras finais de alguém que está morrendo, permitindo que sejam usadas como prova em uma exceção à regra que veta declarações de terceiros em um testemunho.

Atualmente, essas experiências têm sido notadas por psicólogos, trabalhadores sociais e enfermeiras. No entanto, os médicos tendem a evitá-las porque "não sabemos o que elas são", afirma o doutor Timothy E. Quill, especialista em medicina de cuidados paliativos do Centro Médico da Universidade de Rochester. Alguns pesquisadores acreditam que os pacientes e os médicos se negam a relatar esses fenômenos por medo do ridículo.

Agora, uma equipe de clínicos e pesquisadores no Lar Buffalo liderada por Kerr, um interno que possui doutorado em Neurobiologia, está procurando desmistificar essas experiências e entender seu papel e importância como apoio para "uma boa morte" -- para o paciente e as pessoas próximas.

Esses eventos são diferentes de "experiências de quase-morte", como aquelas lembradas por pessoas que reviveram em UTIs, diz Pei C. Grant, diretor da equipe de pesquisa. "Essas pessoas estão caminhando para a morte, não são aquelas que escaparam por pouco."

O Lar Buffalo, em Cheektowaga, Nova York, cuida de cinco mil pacientes por ano, a maioria com visitas a residências e entidades de assistência. Primeiro, os médicos, as enfermeiras e os trabalhadores sociais ou os religiosos perguntam aos pacientes: "Como você tem dormido?" Depois seguem com a questão: "Você consegue se lembrar de seus sonhos?"

Visões reconfortantes

"Estava deitada na cama e as pessoas passavam muito devagar por mim. As que estavam do lado direito, eu não as conhecia, mas eram muito simpáticas e tocavam meu braço e minha mão enquanto passavam. Do outro lado estavam as conhecidas -- minha mãe e meu pai, meu tio. Todos que já haviam morrido estavam lá, mas não meu marido, nem meu cachorro, e eu sabia que os veria de novo", contou Jeanne Faber, de 75 anos, meses antes de morrer de câncer no ovário.

Para seu estudo preliminar, publicado no The Journal of Palliative Medicine, os pesquisadores conduziram várias entrevistas com 59 pacientes terminais admitidos com câncer agudo no Lar Buffalo, um ambiente acolhedor revestido de madeira, com janelas que dão para fontes, gazebos e jardins. Quase todos os pacientes disseram que tinham sonhos ou visões. Descreveram a maioria como reconfortante; associaram um em cada cinco com um sentimento de aflição; e o restante foi neutro.

Os sonhos e visões foram vagamente classificados em categorias: oportunidades de se envolver com aqueles que já se foram; os entes queridos "esperando"; negócios inacabados. Temas de amor, compartilhado ou não, percorreram os sonhos, assim como a necessidade de resolução ou perdão. Nos sonhos, os pacientes recebiam a confirmação de terem sido bons pais, filhos e trabalhadores. Embalavam coisas em caixas, fazendo preparativos para a jornada, e, como Majors, geralmente partiam com companheiros queridos como guias. Embora muitos tenham dito que raramente se lembravam de seus sonhos, esses eles não conseguiam esquecer.

-- Um paciente de 76 anos disse que sonhou com sua mãe, que morreu quando ele era criança. Podia sentir seu perfume e ouvir sua voz suave afirmando "Eu te amo".

-- Uma mulher mais velha embalava uma criança invisível deitada na cama. (O marido contou aos pesquisadores que era o primeiro filho do casal que morreu no parto.)

-- Nove dias antes de morrer, uma mulher de 54 anos sonhou com um amigo de infância que havia lhe causado uma dor imensa décadas antes. O amigo, já falecido, apareceu como um homem velho e disse: "Desculpe-me, você é uma pessoa boa" e "Se você precisar de ajuda, basta me chamar".

Essa pesquisa ainda está no início. Os investigadores, conselheiros e médicos de cuidados paliativos, estão tentando identificar e descrever os fenômenos. Quill afirma que acredita que os estudos vão tornar essas experiências mais acessíveis aos médicos céticos.

"O maior desafio desse trabalho é ajudar os pacientes a se sentirem mais normais e menos solitários durante essa experiência incomum de morrer. Quanto mais afirmarmos que essas pessoas realmente têm sonhos e visões vívidas, mais poderemos ajudá-las", afirma ele.

Outra pesquisa sugere que os sonhos expressam emoções acumuladas. Tore Nielsen, pesquisador de Neurociência do Sonho e diretor do Laboratório de Sonhos e Pesadelos da Universidade de Montreal, acredita que no final da vida a necessidade de expressá-las é maior. Os sonhos conturbados aparecem com uma energia excessiva. Mas sonhos positivos têm propósitos parecidos.

"A motivação e a urgência desses sonhos vêm de um lugar de medo e incertezas. Os sonhadores estão literalmente saindo dessas situações difíceis", conta ele.

Nas semanas e dias antes da morte, os sonhos dos pacientes da pesquisa tenderam a ocorrer com mais frequência, povoados com os mortos ao invés dos vivos. Os pesquisadores imaginam que esse fenômeno pode até ter valor de prognóstico.

"Eu era um médico agressivo, sempre me perguntando 'O que mais podemos fazer?'", conta Kerr, que também é diretor médico do Lar Buffalo. "Havia um paciente que pensei que precisava ser reidratado, e assim poderíamos mantê-lo por mais algum tempo." Mas, diz ele, uma enfermeira que conhecia os sonhos do paciente advertiu: "'Não é isso. Ele está vendo a mãe morta'. Ele faleceu dois dias depois".

Certamente, muitos pacientes que estão à beira da morte não podem se comunicar. Ou contam apenas pequenos trechos: um anão levantando uma geladeira, vizinhos trazendo uma galinha e a visita de um macaco ao seu apartamento. E alguns, para seu próprio desapontamento, não se lembram dos sonhos.

Kerr, que recentemente falou no TEDxBuffalo sobre a pesquisa, disse que estava simplesmente defendendo que os provedores de serviços de saúde perguntassem aos pacientes sobre seus sonhos, sem medo de recriminação por parte das famílias e dos colegas.

"Frequentemente, quando os sedamos, estamos esterilizando o próprio processo da morte. Já fiz isso e é horrível. Eles dizem: 'Você tirou isso de mim -- eu estava com minha mulher'."

Complexidades do delírio

Enquanto a paciente estava deitada na cama, com a mãe ao seu lado, teve uma visão: viu a melhor amiga da mãe, Mary, que havia morrido de leucemia anos atrás, no quarto de sua mãe, brincando com as cortinas. O cabelo de Mary estava comprido novamente. "Tive a impressão de que ela veio me dizer: 'Você vai ficar bem'. Senti alívio e felicidade e não fiquei com medo", contou Jessica Stone, de 13 anos, que teve Sarcoma de Ewing, um tipo de câncer nos ossos, poucos meses antes de morrer.

Muitas pessoas em lares e instituições sofrem de delírios, algo que pode afetar até 85 por cento dos pacientes hospitalizados no final da vida. Em um estágio de delírio -- causado por febre, metástase no cérebro ou mudanças terminais na química do corpo -- o ritmo circadiano fica severamente desordenado, assim os pacientes podem não saber se estão sonhando ou se estão acordados. A cognição fica alterada.

Quem cuida de pessoas com doenças terminais tem a propensão de ver os sonhos do final da vida como manifestações de delírios. Mas no Lar Buffalo os pesquisadores dizem que, apesar de alguns pacientes da pesquisa entrarem e saírem de um estado de delírio, os sonhos de final de vida não eram, por definição, um produto desse estado. Quem está delirando geralmente não consegue se envolver com os outros nem fazer uma narrativa coerente e organizada. As alucinações descritas podem ser traumatizantes, não reconfortantes.

Ainda assim, permanece a questão de o que fazer com as afirmações de que estavam "sonhando acordados" ou tendo "visões" -- e com o fenômeno não tão incomum de ver parentes ou amigos mortos pairando perto do teto ou nos cantos.]

DonnaBrennan, enfermeira de longa data do Lar Buffalo, lembra-se de conversar com uma paciente de 92 anos com insuficiência cardíaca congestiva. De repente, a paciente olhou para a porta e gritou: "Só um minuto, estou falando com a enfermeira".

Quando avisada de que não havia ninguém ali, a paciente sorriu e disse que era a tia Janiece (sua irmã já falecida) e deu um tapinha na almofada, mostrando à "visitante" onde se sentar. Então a paciente alegremente virou-se para a enfermeira e continuou a conversa.

Em suas notas, Donna descreveu o episódio como uma "alucinação", um sinal de delírio. Quando o episódio foi recontado para Kerr e Anne Banas, neurologista do Lar Buffalo e médica de cuidados paliativos, eles preferiram o termo "visão".

"Existe sentido para as visões ou elas são desorganizadas?", pergunta Anne. "Se existe sentido, precisa ser explorado? Elas trazem conforto ou são angustiantes? Temos a responsabilidade de fazer essas perguntas. Pode ser catártico, e os pacientes muitas vezes precisam compartilhar. E se não perguntarmos, veja o que podemos perder."

O doutor William Breitbart, presidente do departamento de Psiquiatria do Centro de Câncer do Memorial Sloan Kettering, que escreveu sobre delírios e cuidados paliativos, diz que a resposta da equipe também deve considerar as pessoas que estão sempre ao lado dos pacientes: "Esses sonhos e visões podem ser interpretados por membros da família como reconfortantes, porque os ligam a seus ancestrais".

"Mas quem não acredita nisso, pode ficar angustiado. 'Minha mãe está alucinando e vendo mortos. Faça alguma coisa!'." Breitbart treina sua equipe para respeitar as crenças familiares e ajudá-las a entender a complexidade dos delírios.

Alguns episódios de sonhos ocorrem durante o que é conhecido como "sono em estado misto" -- quando as fronteiras entre a vigília e o sono se fragmentam, explica o doutor Carlos H. Schenck, psiquiatra e especialistas em sono da Escola de Medicina da Universidade de Minnesota. Jessica Stone, a adolescente com sarcoma de Ewing, falou com emoção sobre um sonho com seu cachorro morto, Shadow. Quando acordou, contou, viu o corpo longo e escuro do animal ao lado de sua cama.

Anne Banas, a neurologista, foca na fase de experiências de final de vida. "Tento mostrar para a família que é normal, porque a maneira como eles percebem a questão pode afastá-los ou aproximá-los do paciente", conta ela.

Reviver um trauma

O paciente nunca havia falado realmente sobre a guerra. Mas em seus sonhos finais, as histórias surgiram. No primeiro, os mortos estavam por toda parte. Na Praia Omaha, na Normandia. Nas ondas. Ele foi artilheiro aos 17 anos e estava em um barco de resgate, tentando freneticamente trazer os soldados de volta para o USS Texas. "Só há morte e homens mortos ao meu redor", contou ele. Em outro, um soldado falecido disse a ele: "Eles vêm buscá-lo na semana que vem". Finalmente, sonhou que recebia os documentos de dispensa, o qual descreveu como "reconfortante". John, de 88 anos, que teve um linfoma, morreu dormindo dois dias depois.

Mas nem todos os sonhos de final de vida acalmam as pessoas que estão morrendo. Os pesquisadores descobriram que cerca de 20 por cento são perturbadores. Frequentemente, quem sofreu um trauma pode revivê-lo em sonhos à beira da morte. Alguns conseguem resolver a experiência. Outros não.

Quando é preciso intervir com remédios antipsicóticos ou ansiolíticos para ajudar o paciente a ter uma morte pacífica? Para os médicos do Lar Buffalo, a decisão é tomada com uma equipe de avaliação que inclui as opiniões dos membros da família.

Kerr explica: "Os filhos vão ver os pais em estados alterados e acham que estão sofrendo ou lutando contra a morte. Mas se você disser: 'Ela está falando sobre pessoas falecidas, e isso é normal. Aposto que você pode aprender muito sobre ela e sua família', pode ver que os parentes vão se acalmar e tomar notas".

Sem informação suficiente da família, a equipe pode não saber como interpretar a agitação do paciente. Uma delas parecia atormentada por pesadelos. A equipe do Lar Buffalo entrevistou pessoas da família, que de modo relutante contaram que a mulher havia sido abusada sexualmente quando era menina. A família estava horrorizada com o fato de ela estar revivendo essas memórias em seus últimos dias.

Com essa informação, a equipe preferiu administrar um ansiolítico, ao invés de apenas antipsicóticos. A mulher relaxou e foi capaz de se comunicar com um padre. Ela morreu dormindo calmamente alguns dias depois.

No final do ano passado, a enfermeira Donna Brennan estava cuidando de um ex-policial no estágio final de um câncer de pulmão. Ele contou a ela que havia "feito coisas ruins" no emprego. Disse que tinha traído a mulher e estava afastado dos filhos. Seus sonhos nunca eram pacíficos. "Ele era esfaqueado, levava um tiro ou não podia respirar. Pedia desculpas para a mulher e ela não respondia, ou lembrava a ele o quanto a havia machucado. Ele é uma alma torturada."

Alguns provedores de cuidados paliativos acreditam que esses sonhos são o centro de uma experiência espiritual e não deveriam ser manipulados. Quill, que chama as pessoas com essas visões de "românticos da casa de saúde", não concorda.

"Deveríamos abrir a porta com nossas questões, mas não forçar os pacientes a passar por ela. Nosso trabalho é testemunhar, explorar e diminuir a solidão. Se for benigno e rico em conteúdo, que venha. Mas se trouxer de volta dores sérias, buscamos ajuda -- um psicólogo, um religioso -- porque nessa área, nós médicos não sabemos o que fazer."

Alívio para os vivos

No primeiro sonho, uma aranha preta com olhos pequenos chegou perto de seu rosto. Em seguida, transformou-se em um grande caminhão preto com uma carroceria vermelha, caindo sobre ela. Aterrorizada, ela se forçou a acordar. Em outro sonho, teve que passar por sua lavanderia para chegar à cozinha. Olhou para baixo e viu umas 50 aranhas pretas rastejando no chão. Ficou apavorada! Mas quando olhou mais de perto, viu que eram joaninhas. "Joaninhas são fofas e eu sabia que não iam me machucar. Então fui para a cozinha", contou Rosemary Shaffer, de 78 anos, dois meses antes de morrer de câncer de cólon.

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Imagem: Jonathon Rosen/The New York Times

Os pesquisadores do Lar Buffalo descobriram que esses sonhos confortam não apenas os que estão morrendo, mas também quem fica.

Kathleen Hutton não larga os diários de sonhos do final da vida mantidos meticulosamente por sua irmã, Rosemary Shaffer, ex-professora de educação primária e diretora de escola. Rosemary escreveu sobre as aranhas e os caminhões e sobre as joaninhas. Em um sonho, viu flores em uma funerária, que a lembraram das que a filha pintava em cachecóis artesanais. Ela se sentiu amada e feliz.

"Ainda bem que ela podia falar de seus sonhos com as pessoas do Lar. Ela sabia que era o seu subconsciente trabalhando em seus sentimentos. Ficou muito mais em paz", afirma Kathleen.

Saber disso acalmou sua própria dor, afirma Kathleen, que chorava enquanto apertava os diários durante uma visita ao lar.

Vários meses atrás, a enfermeira Donna, sentou-se ao lado de um marido desesperado, cuja mulher tinha um câncer no pâncreas que havia se espalhado pelo fígado. Ela havia lhe contado sonhos com trabalho, Deus e conhecidos já falecidos. A paciente disse que achava que seria bem-vinda ao paraíso. Que Deus afirmara que ela havia sido uma boa mulher e mãe.

"O marido estava bravo com Deus. Eu disse: 'Mas Ann não está. Os sonhos não são assustadores para ela. São uma confirmação'", conta Donna.

"Ele só abaixou a cabeça e chorou."